As cartas da Corte no Tarô

Contexto histórico

Publicado dia 09 de Julho de 2017

 

 

Certa vez comparando vários baralhos de tarô diferentes, me perguntei o por que da diferença entre os nomes “valetes”, “pajens”, ou “princesas”, e em alguns casos “cavaleiros” e “príncipes”.

A maioria das pessoas costuma usar expressões como “valetes ou princesas” ou “cavaleiro ou príncipe” para se referir a mesma carta, por exemplo cavaleiro/príncipe de Espadas. Porém dentro de uma hierarquia monárquica, existe uma diferença considerável entre certos cargos ou posições sociais. Por exemplo, um “pajem” na época medieval, normalmente era um menino e em certa idade ao ganhar “força física” próximo de 12 ou 15 anos, se tornava um escudeiro (ajudante exclusivo de um cavaleiro europeu — na cultura hebraica, era comum o sucessor ao trono ser um pajem do rei, por exemplo Davi era pajem de Saul, e só se tornou rei, quando Saul morreu). Diferente de um valete que poderia ser um menino ou menina e era um mero serviçal de uma casa ou família nobre. E se pensarmos em princesas ou príncipes o abismo aumenta ainda mais, já que esse título é dado apenas para os sucessores ao trono.

Para encontrar uma resposta precisa ao problema, foi necessário uma pesquisa histórica, sobre costumes medievais e origens do Tarô:

 

Uma volta no tempo:

Além de apresentar aos europeus a literatura clássica, a alquimia, a confecção do papel e as cartas de jogo durante a Idade Média, a cultura islâmica da Espanha introduziu o misticismo sufi. A palavra sufi deriva da raiz suf, que quer dizer “lã”. Desde os tempos de Maomé (570–632) havia acetas muçulmanos que vestiam roupas de lã e buscavam uma espiritualidade pura, em contraste à atitude mundana dos governantes islâmicos. Esses acetas eram chamados “aqueles que choram”, ou aqueles que habitam “a cabana da tristeza”. Eram dualistas e pessimistas.

Quando o imperador cristão Justiniano fechou a escola neoplatônica de Atenas, em 529, seus filósofos foram se refugiar na Pérsia. Três séculos depois, uma nova onda otimista de misticismo se espalhou a partir da Pérsia e transformou os acetas sufis em místicos poéticos e dançarinos inflamados pelo amor divino.

Durante esse período, o movimento sufi adquiriu uma qualidade neoplatônica, comparando o amor divino ao amor erótico. Mas tarde, os sufis ficaram conhecidos por adotar ideias helenísticas, neoplatônicas e herméticas, bem como por receber influências de gnósticos, zoroastristas e bramanistas da Índia, e os maiores alquimistas islâmicos eram sufis. Já no século XII, o sufismo havia desenvolvido um sistema neoplatônico, teosófico, que livremente falava dos ensinamentos de Hermes junto com o Corão e estava bem representado na Espanha muçulmana. Essa abertura por vezes levava os sufis a conflitos com as autoridades ortodoxas, e alguns foram executadas como heréticos. Um exemplo foi o místico Hallaj (858–922), famoso por haver declarado: “Eu sou a verdade criativa”. Foi executado por sua crença e mais tarde acabou sendo chamado de “Mártir do Amor”.

“Fica com quem amas e deixa que fale,
O invejoso, que à paixão nunca fez bem.
Deus misericordioso não criou nada mais belo
do que dois amantes deitados num só colchão,
nele abraçados, sobre eles as joias da bênção,
nele abraçados, pulsos e braços entrelaçados!
Quando os corações se habituam à paixão,
as pessoas deixam as conversas banais.
Se a tua sorte te fizer desejar alguém,
vai atrás dele e procura-o onde estiver!
Ó tu, que censuras a paixão dos apaixonados,
acaso poderias consertar corações dilacerados?”
(Trecho extraído da 83ª Noite das Mil e Umas Noites Árabes)

A maior contribuição que os sufis deram à cultura islâmica foi por meio da poesia e da música. Tornaram-se mestres da poesia amorosa que expressava o desejo da alma pela união com Deus, o Amado. Nas formas poéticas que criaram, esse desejo estava presente na metáfora de um amante desejando o ser amado. A beleza eterna era simbolizada pela beleza feminina, e o ser amado por uma mulher de classe mais alta ou além do alcance do cantor. Em outras formas, dizia-se que a alma seria a esposa amorosa de Deus. A poesia deles infiltrou-se na cultura islâmica de tal forma que toda poesia amorosa do Oriente Médio foi influenciada por ela, e a distinção entre o amor profano e o espiritual tornou-se ambígua. Nos séculos XII e XIII, esses cantores místicos inflamaram os cristãos da Espanha e do sul da França com sua paixão, e a tradição dos trovadores nasceu.

Os trovadores eram na maioria nobres que compunham poemas de amor no vernáculo, os quais eram apresentados pelos músicos profissionais chamados jograis. Os jograis viajavam de um castelo para outro cantando, fazendo piadas e apresentações para se manter. A imagem do amor nobre que conceberam transformou o pensamento europeu. O assunto de suas canções era sempre o amor e a beleza, que viam como uma força de transformação espiritual. As músicas eram de nobres cavaleiros que prometiam seu amor a uma dama de status social mais elevado, e o cavaleiro seria transformado ao tentar se provar digno do amor dela por suas façanhas.

Nessa época surgiram as histórias de “cavaleiros” apaixonados e corajosos que enfrentavam desafios impossíveis para conquistar o amor ou o direito de casar com a dama amada ou desejada;

Sua área de atuação era primeiro a Espanha, o sul da França e a Itália. Graças à influência de padrinhos poderosos, como Leonor da Aquitânia, vinda do sul e casada primeiro com o rei da França e depois com o da Inglaterra, suas canções logo se espalharam para o norte, onde se misturaram a canções de aventura e se tornaram a literatura romântica ou de romance. A palavra “romance” se refere ao fato de que as obras eram escritas nas línguas românicas, em vez do latim. Os romances mesclavam amor e aventura de um jeito que agradava a homens e mulheres. No coração das histórias havia o ideal da dama como o fator motivador espiritual por trás das façanhas de um grande cavaleiro.

 

Leonor da Aquitânia by Edmund Blair Leighton

Os personagens mais famosos que surgiram com a tradição românica são o rei Artur e seus Cavaleiros da Távola redonda. Na lenda arturiana, encontramos uma mistura de misticismo antigo celta e cristão, combinado com amor cortês e simbolismo alquímico. Todos esses elementos convergem para formar a lenda do Graal. Nas versões mais antigas da lenda, o Graal era intimamente conectado à rainha Guinevere. Pode ter representado sua honra ou sua alma perdida, e os Cavaleiros da Távola Redonda juraram recuperá-la. Conforme a lenda evoluiu, o mito da busca da alma por algo perdido tomou a formula da missão dos cavaleiros atrás do cálice que Cristo usou na última ceia. O Graal se tornou um recipiente onde o elixir vermelho do sangue do Cristo fluía continuamente. O Graal adquiriu qualidades similares às da Pedra filosofal: podia prolongar a vida indefinidamente e, ao encontrá-lo, o reino se curava.

 

Nas lendas arturianas, Artur ainda como um jovem, era apenas o escudeiro do Cavaleiro Kay.

 

Anos depois o mesmo Artur, agora como Rei de Avalon, e ao seu lado a sua Rainha Guinevere

 

Já este é Lancelot, o Cavaleiro mais nobre e poderoso do Rei Artur, teoricamente totalmente fiel ao Rei

 

Mas o amor fez com que Lancelot tivesse um caso com a Rainha Guinevere (esposa do rei Artur)

 

E parte do drama romântico, o Rei traído pela esposa e cavaleiro bane os dois do reino

 

Lancelot and Guinevere por Herbert James Draper

De várias maneiras, a veneração mística sufi do feminino teve um efeito maior na cultura europeia cristã do que na cultura islâmica. As canções de trovadores e a literatura românicas civilizaram a nobreza. Desde a participação nas cruzadas, os cavaleiros já haviam começado a se ver como defensores da cristandade, tentando, mas nem sempre conseguindo, viver conforme um código de ética denominado cavalheiresco. Emulando os heróis das lendas, os cavaleiros se viam como defensores dos fracos e admirados por sua habilidade com a poesia, bem como seu uso de armas. No cerne da ética cavalheiresca estava uma dama da nobreza como símbolo da beleza e da bondade. Como nas histórias, um cavaleiro prometia seu amor e seus serviços a uma mulher de classe superior e levaria uma echarpe ou outro mimo de sua senhora enquanto participava de um torneio.

O código cavalheiresco reforçou a posição e o prestígio das mulheres nos séculos XI, XII e XIII, especialmente entre a nobreza. Durante esse período, Leonor de Aquitânia e suas filhas, Marie e Aélis, exerceram mais influência na vida da corte do que qualquer mulher medieval tinha feito até aquele momento. No plano espiritual, o culto e a veneração da Virgem Maria foram emprestados de Bizâncio e se espalharam rapidamente pelo ocidente. Foi a era grandiosa da construção de catedrais, e a maioria desses monumentos góticos era dedicada à Virgem Maria como a Rainha dos Santos. Também durante esse período, a palavra she (“ela”) foi acrescentada à língua inglesa. Essa adição permitiu aos falantes do idioma se referirem às mulheres com mais sensibilidade. Os próprios cavaleiros templários tinham como a igreja ou a fé cristã, como o objeto de amor a ser honrado.

Quando o jogo de xadrez foi introduzido no Ocidente, mais uma vez pela população islâmica da Espanha, os europeus o transformaram ao pôr a rainha como a peça mais poderosa no tabuleiro. De forma similar, o baralho mameluco continha três cartas masculinas da corte em posição ascendente. Esse modelo foi adotado num primeiro momento para os baralhos europeus e ainda é encontrado em alguns baralhos espanhóis e italianos, porém, na maioria dos lugares, o baralho foi transformado com a adição de uma rainha como a quarta carta da corte ou em lugar de uma das figuras masculinas. Esse padrão também foi usado no tarô. A inclusão da rainha da realeza do Tarô é diretamente influenciada pela cavalaria. O rei tem o mais alto posto, e no modelo original espanhol, o cavaleiro fica abaixo, servindo o rei. Abaixo do cavaleiro está o valete (um criado) ou um escudeiro (um cavaleiro aprendiz) que serve o cavaleiro. Com a inclusão da rainha, o cavaleiro, à moda da cavalaria, serve-a em vez de o rei. Ele é como Sir Lancelote, que dedica seu serviço a Guinevere em vez de a Artur.

Em reconhecimento de sua conexão com a literatura românica, começando no século XV, as cartas francesas da corte (rei, rainha e valete) foram batizadas com os nomes de figuras proeminentes da história medieval e da mitologia. Os reis eram: César para ouros, Carlos Magno para copas, Davi para espadas e Alexandre para paus. O plano era que representassem os heróis de quatro grande civilizações: romana, cristã, judaica e grega. As rinhas foram batizadas de: Raquel, uma figura bíblica, para ouros. Judite, outra figura bíblica para copas; Palas Atena, a deusa grega, para espadas; e Argine, uma rainha romana, para paus. Os valetes receberam nomes de famosos cavaleiros: Heitor, da Ilíada, para ouros; o campeão de Joana d’Arc, La Hire, para copas, o cavaleiro de Carlos Magno, Ogier, para espadas e Lancelot, para paus. Esses nomes sugerem que o papel do valete e do cavaleiro haviam se fundido nos baralhos franceses.

Como mencionamos no começo, alguns dos primeiros baralhos incluíam figuras femininas em suas cartas reais de posição mais baixa. Essas figuras podem ser entendias como criadas femininas, que, como o valete masculino, serviam o cavaleiro, ou poderiam ser a dama, a companheira do cavaleiro. Esse é certamente o caso no tarô de Cary-Yale Visconti, c. 1445. Nesse antigo baralho pintado à mão, há seis nobres em cada naipe: uma figura feminina e outra masculina, provavelmente o escudeiro e sua dama; uma dama e seu cavaleiro; e a rainha e o rei.

Nos jogos de cartas de quatro naipes modernos, o nome do valete mudou de knave para jack, de modo que sua inicial na borda da carta não fosse confundida com a do rei (king). No tarô de Waite-Smith e na maioria dos tarôs modernos, o nome do valete foi trocado para pajem. Embora no uso moderno um pajem sejam um criado como um valete, isso não era verdade na era da cavalaria. Um pajem era um menino de nascimento nobre que era aprendiz de um cavaleiro e sua dama. De modo geral, ele servia a dama e, quando tivesse idade suficiente para que o cavaleiro lhe ensinasse o uso das armas, seu título mudava para escudeiro. Como Waite admitiu em seu The Pictorial Key to the Tarot (“A chave pictórica para o tarô”), as figuras nas cartas da corte no tarô são velhas demais para serem pajens e, se representassem o aprendiz do cavaleiro, deveriam ser chamadas escudeiros.

O primeiro ocultista a atribuir significados aos naipes menores foi Etteilla. Ele mesmo relata que aprendeu a ler as cartas com um cartomante do norte da Itália e seus significados estão conectados ao sistema italiano tradicional. Etteilla publicou suas interpretações dos naipes menores em 1780, um ano depois de o oitavo volume do Monde Primitif ser publicado. A maioria das interpretações modernas para as cartas numeradas e as da corte, inclusive aquelas do tarô de Waite-Smith, vem de Etteilla.

 

Rainha de Ouro no Tarô de Etteila

 

Rainha de Ouro, Taro Solo Busca

 

Rainha de Ouro Taro Rider Waite

Quando a Golden Dawn introduziu o tarô na Grã-Bretanha, eles reinterpretaram os naipes menores para seus próprios propósitos ocultistas. Nos sistemas mágicos astrológicos da Renascença, baseados na tradução do latim do texto islâmico Picatrix e nas obras de Agrippa, há 36 divisões do zodíaco chamadas decanatos, que são a maior fonte das imagens talismânicas. E, nos ensinamentos da Golden Dawn sobre o tarô, os 36 decanatos estão relacionados às cartas numeradas dos arcanos menores, exceto o ás.

A Golden Dawn reinterpretou as cartas da corte como a princesa (em lugar do valete), o rei (representado montado a cavalo, como um cavaleiro), a rainha e o príncipe (sentado em uma carruagem). Essas mudanças parecem arbitrárias e não são baseadas nos baralhos tradicionais. O tarô de Waite-Smith foi influenciado pela Gonden Dawn, mas rejeitou a alteração no nome das figuras reais. Nas imagens que Smith escolheu para as cartas numeradas, podemos ver as influências das associações com os decanatos, mas também as interpretações de Etteila.

 

Pajem de Espadas Taro de Waite, ou seja um escudeiro

 

O Valete de Espadas do Tarô Solo Busca, não tem uma postura de um escudeiro ou pajem, ele tem uma postura mais frágil, indicando que seja mais um servo, do que focado em assuntos militares ou ambições de subir na escala social. Ter um instrumento em mãos, indica talvez uma função de entretenimento como um Trovador.

 

No Tarô de Etteila só temos três cartas reais, o Rei, a Rainha e o Cavaleiro, ou seja, não temos uma quarta posição para a Valete ou Pajem etc.

 

Valete de Espadas do Tarô de Marselha

Outro ponto que precisa ser observado, é a origem do baralho que está sendo comparado. Um Tarô de origem inglesa, provavelmente terá uma visão da corte mais próxima a corte inglesa, onde a linha sucessória é diretamente ligada a família, tendo uma lista de futuros herdeiros da coroa muito bem definidos e nenhum individuo “comum” poderá desejar tal posto. Essa visão já é diferente de um baralho francês, onde a linha sucessória era muito mais veraneável e determinada mais por casamentos com estrangeiros, e revoltas internas, e é comum uma certa aversão a coroa, tendo em vista as reformas e revoluções que geralmente “derrubavam” rei naquele pais. Baralhos espanhóis sofrem da mesma influência dos franceses, mas nos baralhos Alemães e Russos, o aspecto familiar volta a ter um importante poder de influência,

Waite era inglês, logo o objetivo dele ao planejar o seu Tarô provavelmente tinha mais em vista algo nobre e respeitoso como é a realeza inglesa, e o baralho de Marselha, provavelmente observou mais as loucuras e exageros que a corte francesa vivia naquela época.

No Book of Thoth, Crowley argumenta a mudança dele nas cartas da corte (Cavaleiro>Rainha>Príncipe>Princesa).

O Cavaleiro deixa de ser Rei porque é supostamente uma figura mais viril, aquele que conquista a donzela. E como casal sagrado, obviamente geram o príncipe e a princesa. Estes, por conseguinte, se tornarão cavaleiro e rainha perpetuando o ciclo.

Ele continua a teoria por estabelecer a princesa em Malkuth e o príncipe em Tipheret. É uma inversão de gênero no baralho tradicional, se não me engano, por conta dos papeis tradicionais do Yin/Yang. É a princesa a casa da fertilidade, aquela que gera, e portanto a mais próxima do plano terreno.

Nessa perspectiva, o pagem é o mais próximo do plano terreno dentro de uma estrutura nobiliárquica.

Para nós das Américas é mais difícil compreender totalmente essa visão da coroa, já que a nossa cultura sobre o assunto é mais de filmes e histórias do que de uma realidade próxima. No Tarô alquímico de Robert Place por exemplo (um americano) as cartas reais tem um aspecto mais da presença de poder do que uma representação de uma hierarquia monárquica:

 

 

Independente de qual Tarô você use, é sempre importante entender e pesquisar as origem e as motivações de que cada autor teve para fazer uma carta de um jeito ou de outro, por que só assim, terá uma bagagem de significados completos da ferramenta que está em sua mão.

Particularmente, me agrada mais a ideia de imaginar a carta do valete como um escudeiro que serve ao cavaleiro, que por mais que seja (ou tenha que ser) fiel ao Rei, acaba vivendo um dilema por amar a Rainha mais do que deveria.

Gostou do texto? Gostaria muito de saber sua opinião ou feedback.

Se você tiver qualquer dúvida pode me enviar um e-mail para diogenesjunior.ti@gmail.com.


Artur Brasil Corte Tarô

Fontes e Referências

Alquimia e Tarô — Robert Place (Editora Presságio);

Livro das Mil e Uma Noites — LIVRO 1 (Editora Biblioteca Azul);

The Pictorial Key to the Tarot — A E Smith;

Trecho sobre Aleister Crowley é de autoria de Harry Cavalcante;

 

Sígilo Diogenes Junior

Tem alguma dúvida, ou apenas enviar um feedback? Me envie um e-mail para contato@diogenesjunior.com.br