As Mil e Uma Noites e a mitologia Árabe

Então Sherazade começou…

Publicado em 16 de Fevereiro de 2017

 

Ó, minha irmã, recite-nos uma história nova, deliciosa e deleitável, com a qual podemos passar as horas de vigília de nossa última noite;

Por todo o mundo árabe há uma forte tradição de contação de histórias, com contos folclóricos passados oralmente por muitas gerações. No entanto, a partir do século VIII, com a ascensão dos centros urbanos em florescimento e uma cultura árabe sofisticada que prosperava sob a orientação do Islã, passou-se a fazer uma distinção cada vez maior entre a al-fus’ha (a linguagem refinada ensinada em centros educacionais) e a al-ammiyyah (a linguagem das pessoas comuns). A literatura pré-islâmica escrita em vernáculo — incluindo contos folclóricos tradicionais — passou a ser desprezada pela elite educada, e autores de literatura árabe se afastaram dos trabalhos de prosa criativa para se concentrar na poesia e na não ficção.

Apesar da ênfase dada à “arte sofisticada” da poesia, havia um apetite público cada vez maior por uma boa história. E embora não fosse vista com bons olhos pelos acadêmicos árabes a coleção de contos que apareceu sob vários títulos ao longo dos séculos seguintes, mas que hoje é conhecida como As Mil e Uma Noites ou Noites Árabes.

 

Contexto histórico

No início do século VII , surgiu às margens dos grandes impérios, o Bizantino e a Sassânida, um movimento religioso que dominou a metade ocidental do mundo. Em Meca, cidade da Arábia Ocidental , Maomé começou a convocar homens e mulheres à reforma e à submissão à vontade de Deus, expressa no que ele e seus seguidores aceitavam com o mensagens divinas a ele reveladas e mais tarde incorporadas num livro, o Corão. Em nome da nova religião — o Islã — , exércitos recrutados entre os habitantes da Arábia conquistaram os países vizinhos e fundaram um novo Império, o Califado, que incluiu grande parte do território do Império Bizantino e todo o Sassânida, e estendeu-se da Ásia Central até a Espanha. O centro de poder passou da Arábia para Damasco, na Síria, sob os califas omíadas, e depois para Bagdá, no Iraque, sob os abácidas.
No século X , o Califado desmoronou , e surgiram califados rivais no Egito e na Espanha, mas a unidade social e cultural que se desenvolvera em seu interior continuou . Grande parte da população tornara-se muçulmana (ou seja, seguidores da religião do Islã), em bora continuasse havendo comunidades judaicas e cristãs; a língua árabe difundira-se e tornara-se o veículo de uma cultura que incorporava elementos das tradições dos povos absorvidos no mundo muçulmano, e manifestava-se na literatura e em sistemas de lei , tecnologia e espiritualidade. Dentro dos diferentes ambientes físicos, as sociedades muçulmanas desenvolveram instituições e formas distintas; as ligações estabelecidas entre países da bacia do Mediterrâneo e do oceano Índico criaram um sistema de comércio único, trazendo mudanças na agricultura e nos ofícios, proporcionando a base para o surgimento de grandes cidades, com uma civilização urbana expressa em edificações de um característico estilo islâmico.

 

Contos dentro de Contos

A estrutura de As mil e uma noites leva o formato de moldura narrativa, na qual uma história contém todas as outras. A “moldura” é a história da princesa Sherazade, ameaçada de execução pelo próprio marido, o príncipe Shahryar. Depois de sua esposa anterior ter cometido adultério, o príncipe acredita que todas as mulheres são traiçoeiras e assim, prometeu se casar com uma nova noiva todos os dias, “tirar sua virgindade à noite e matá-la pela manhã para garantir a sua honra”. A princesa evita esse destino ao não contar o final da história que estava narrando em sua noite de núpcias, fazendo com que Shahyar adie a sua execução. Depois de 1.001 noites como essa, ele confessa que ela acabou por transformar sua alma e a perdoa.

E a aurora alcançou Sahrazad, que parou de falar. Dinarzad lhe disse: “Como é agradável e insólita a sua história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se acaso eu viver e for poupada”. Na noite seguinte ela disse:

Os contos narrados por Sherazade misturam histórias fantásticas que acontecem em locais lendários com outras narrativas que envolvem figuras históricas — como Haroun al Rashid (c. 766–809), soberano do califado abássida durante a era de ouro islâmica. A natureza diversa dos contos é responsável pela grande variedade de gêneros encontrada na coleção, que vão de aventura, romance, e contos de fadas ao terror e até mesmo ficção cientifica.

Então a jovem filha do rei pegou uma faca de ferro com um nome gravado em hebraico, traçou um círculo perfeito no centro do palácio, escrevendo no interior desse círculo um nome em caligrafia Küfi e outras palavras talismânicas; em seguida, fez invocações e esconjuros. Logo vimos o mundo ser coberto de sombras e atmosfera tingir-se de negro, e isso diante dos nossos olhos, com tal intensidade que chegamos a cogitar que o mundo se fecharia sobre nós. Estávamos nessa situação quando vislumbramos o gênio, já pousado no solo em forma de Leão, tão grande quanto um boi, e nos enchemos de medo. A jovem lhe disse: “Fora daqui, seu cachorro!”. O gênio respondeu: “Você atraiçoou a mim e ao juramento!” Não tínhamos combinado que um nunca desafiaria o outro, sua traidora?”. Ela lhe disse: “E por acaso eu juraria alguma coisa para você, seu maldito?”. O gênio respondeu: “Então tome o que eu lhe trouxe!”, e, arreganhando as mandíbulas, correu em direção à jovem, mas ela rapidamente arrancou um fio de cabelo, balançou-o na mão, balbuciou algo entredentes, e o fio se transformou numa espada afiada com qual ela golpeão o leão, cortando-o em duas partes. As duas partes saíram voando, mas restou a cabeça, que se transformou em escorpião. A Jovem por sua vez adotou a forma de uma enorme serpente, e por algum tempo travou violenta luta com o escorpião, mas logo o escorpião se transformou em abutre e voou para fora do palácio; então a serpente virou águia e voou no encalço do abutre, desaparecendo por algum tempo. Mas logo o chão se fendeu, dele saindo um gato malhado que gritou, roncou e rosnou; atrás do gato saiu um lobo preto; lutaram no palácio por algum tempo, e então o lobo derrotou o gato; este gritou e se transformou em larva, que rastejou e entrou numa romã jogada ao lado da fonte; a romã inchou até ficar do tamanho de uma melancia listrada, ao passo que o lobo se transformava em galo branco como a neve. A romã saiu voando e caiu no mármore da parte mais elevada do saguão, espatifou-se e seu grãos se espalharam todos; o galo avançou sobre eles e começou a comer os grãos, até que não restou senão um único grão escondido ao lado da fonte; o galo se pôs a cacarejar, gritar e bater asas, fazendo-nos sinais com o bico que queriam dizer “ainda resta algum grão?”, e, como não entendêssemos o que dizia, ele deu berro tão estrondoso que imaginamos que o palácio desabaria sobre nós. De repente o galo deu uma olhada e, vendo o grão ao lado da fonte, correu para ele a fim de engoli-lo.
E a aurora alcançou Sahrazad, que parou de falar. Dinarzad lhe disse: “Como é agradável e espantosa a sua história maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se acaso eu viver e o rei me preservar”.

 

Influência no Ocidente

As histórias só se tornaram conhecidas na Europa no século XVIII, graças ao reconto realizado pelo acadêmico francês Antoine Galland em Les mille et une muits (1704–1717). O manuscrito traduzido por Galland era incompleto, contendo bem menos que as 1.001 noites de histórias, então ele adicionou os contos árabes de Ali Babá, Aladim e Simbad. Estes nunca fizeram parte da coleção original de As mil e uma noites, mas desde então, tornaram-se as histórias mais famosas da compilação no Ocidente.


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Fontes e Referências

Uma história dos Povos Árabes — Albert Hourani

Livro das Mil e uma noite (ramo sírio) — Biblioteca Azul

O Livro da literatura — Globo Livros

 

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