Dossiê Arcanos Maiores Edição #8: O Carro

"Somos o que fazemos. Nos dias em que fazemos, existimos. Nos outros, apenas duramos. O que nós não fazemos não existe". O famoso fragmento do Padro Antônio Vieira, que nos lembra não haver distinção entre o fazer e o fazer-se. "O que fazemos enquanto fazemos o que fazemos?

Publicado em 23 de Janeiro de 2021

 

Introdução

Sem dúvidas a carta do Carro é a que eu tenho maior conexão, não por ser a minha carta favorita, mas pela relação pessoal que tenho com o significado que ela representa. A grande mensagem do Arcano do Carro é o ter o meio para se chegar aonde deseja, o movimento, ir em direção de algo que decidimos e ter as condições (físicas, mentais, espirituais) para tal, as próprias circunstâncias se inclinam para isso.

Em todas minhas meditações com arcanos do tarô, é com o personagem do carro que melhor consigo conversar e ter uma “cena” que se conecta com as imagens e percepções da minha realidade: imaginar o movimento do carro, indo de um lugar para o outro, não como um passeio já que o carro do Arcanos número 7 é um carro militar (não atoa, o título em francês e inglês é Charriot, ”a carruagem”), tem propósito, estamos indo em uma missão, algo que precisa ser realizado.

Age como auriga, força diretiva, localizado no centro íntimo do veículo psíquico. Psicologicamente isso poderia significar tais elementos, antigamente projetados em figuras de proa (imperador ou papa), foram reunidos e interiorizados como princípio diretivo que opera no interior da própria psique. À diferença das figuras masculinas de autoridade encontradas até agora, esse rei é jovem, o que indica que trás consigo nova energia e novas ideias.

O trono em que o Papa está sentado é fixo. O carro do rei lhe permite maior latitude e flexibilidade. A sua força motriz é fornecida pelos dois cavalos, que formam uma parelha de aspecto insólito, pois um é tão violentamente vermelho quando o outro é insistentemente azul (isso para o Tarô de Marselha, ou os cavalos-esfinges brancos e pretos do baralho Rider Waite). Não há dúvida de que cada um dos animais se imagina como “o cavalo de outra cor”, que expulsa os vestígios de monotonia, acrescentando sabor e espírito à nossa vida. Esses cavalos simbolizam os pólos positivo e negativo da energia animal que existe em toda natureza, sendo o aspecto físico pintado de vermelho e o espiritual, de azul.

Na carta número seis, duas mulheres adversárias confrontam a consciência humana e a mantêm imóvel, impedindo o progresso do ego até que se resolvam os seus dilemas, mas agora os fatores antagônicos são retratados como uma parelha de cavalos que puxam o carro. Mesmo que não em uma parelha perfeita, estão ao menos avançando.

 

Quando digo que o Carro é uma representação de um carro militar, não é um mero comentário ilustrativo, tanto no tarô de Marselha, como no tarô Rider Waite, o objetivo da ilustração é de uma Auriga, carro militar romano que tinha como objetivo guiar as cavalarias, normalmente com o lider militar ou comandante mais influente da tropa, que muitas vezes o próprio individuo recebia esse nome quase como um título, já que o condutor da Biga é mais importante do que o próprio carro, já que sem a destreza e a capacidade de liderar de nada adianta apenas o carro de guerra, ou seja, mais importante que a força e vontade, é a direção, técnica e estratégia em que se aplica essa mesma força.

Com essa explicação, você confiaria esse carro de combate a uma pessoa sem experiência ou para alguém imprudente, sem vontade ou sem visão? A resposta é óbvia: não. Alguns baralhos de tarô apresentam justamente isso, a carta do Carro, como um conselho contra a inexperiência ou ingenuidade perseguindo ambições:

 

Repare na imagem acima, que apesar de termos um condutor do carro, o jovem principe no destaque é tão novo quanto a um bebe, está nú e visivelmente sem nenhuma proteção ou algo que o prenda com segurança ao carro, dando a impressão que dependendo da velocidade ou simplesmente passar por uma lombada, ele irá se ferir na queda.

O curioso da ilustração da carta acima, é que as placas que o nosso jovem personagem segura diz “FAMA” e “VOLA”, que em italiano são “Fama” (no sentido de ser famoso, conhecido) e “Moscas” (no sentido de tão abandonado que está “as moscas”), talvez uma mensagem de que por ingenuidade o personagem embarcou nessa jornada para conquistar coisas em vão. como por exemplo fama e reconhecimento, ou pelo menos, não ser ignorado e esquecido.

A questão da imaturidade, também pode ser interpretada como tomar uma atitude de forma precipitada ou sem preparo, sem conhecer toda a situação ou as capacidades que se tem, “urgência na conquista do controle das próprias emoções”, e também refletir sobre as nossas intenções: por que queremos algo? Realmente é por desejo genuíno, ou é por vingança, inveja, orgulho etc, que por mais que sejam sentimentos “adultos”, podem nos colocar em situações semelhantes ao de uma criança nua e desprotegida partindo para uma batalha: vamos nos ferir. Algumas literaturas apresentam uma ideia de que a carta do Carro representaria uma força de resistir as tentações, o que não acho errado, mas ela não se resume a isso, por que “resistir” me passa uma ideia de “defesa”, e a ilustração da carta demonstra muito mais uma postura mais agressiva, o de ir e conquistar algo, perseguir algo.

Essa umas das principais mensagens que são popularmente difundidas para a carta do carro, o “perseguir ambições”, como vimos no começo desse texto, mas além disso, um sentido de exploração, porque em qualquer campanha de guerra de perseguição, os “caçadores” muitas vezes não sabem exatamente aonde está o inimigo ou o objetivo, apenas uma vaga noção, e é com a exploração do terreno, das circunstancias e sinais, é que podemos obter pistas sobre aonde está ou como se comporta o alvo que estamos caçando.

Como a biga é um carro militar, é natural, olharmos para as forças militares para encontrarmos ótimas definições para “caçadores”:

“As unidades de caçadores dos vários exércitos atuam quase sempre como forças destacadas do corpo principal do exército – composto por unidades de infantaria de linha – para realizarem operações de exploração e de flanqueamento”.

Em especial no Exército Brasileiro, a definição de propósito dos batalhões de caçadores, é muito coerente com o ponto que estamos desenvolvendo: “responsável por emboscar e inquietar a tropa inimiga”. O “inimigo” que a mensagem da carta trás não é uma pessoa, um desafeto, o “inimigo” é o nosso objetivo distante, ou o que nos impede, os obstáculos de chegarmos até ele, e para vencer (conquistar o objetivo) é necessário ir para essa batalha, a caça, a emboscada, afinal de contas, perseguir um objetivo se fosse fácil e simples a carta não seria tão comumente retratada com um carro militar, e sim com algo mais doce e trivial (pacífico);

Em alguns baralhos, a palavra chave para a carta do Carro é “disputas” e como em qualquer disputa precisamos agir com um poder e ações implacáveis, mas tendo em mente claramente o objetivo: queremos entrar nessa disputa para vencer? Ou queremos entrar nessa disputa para resolver o conflito? Ter isso mente ajuda a sabermos o que estamos disposto a abrir mão e o que é inegociável, já que a história nos mostra, que a maioria das batalhas militares não se encerraram com completa aniquilação do inimigo, e sim muitas vezes com algum tipo de acordo.

 

Comentários sobre as ombreiras do personagem principal da carta do Carro

 

Um dos elementos que me chama atenção na carta do Carro, são as ombreiras que apresentam uma face cada uma. Existem diversas interpretações e explicações para ela, mas aqui é necessário uma reflexão profunda sobre até que ponto a ilustração tenta dar algum significado para isso, ou se são apenas o que são: ombreiras.

Para os tempos de hoje pode parecer haver algum significado adicional, por que as ombreiras tem faces desenhadas que poderiam ser uma representação de máscaras de “comédia e tragédia”, faces da lua indicando alguma conexão com sentimentos e o signo de câncer, ou alguma reafirmação sobre polaridades entre masculino e feminino, positivo e negativo, consciente ou inconsciente etc.

Primeiro de tudo, temos que observar o contexto histórico, como já vimos nesse texto, a representação é de um carro de combate e um príncipe que tem no mínimo bons conhecimento militares, e no contexto medieval, as ombreiras eram adornadas com rostos seja para indicar o grau da posição social, ou do símbolo e brasão da família. Essa característica para as ombreiras se dava porque ao ser golpeado por uma espada, um dos locais mais vulneráveis seria a região dos ombros, por isso uma parte da armadura ser reforçada naquela região.

 

Não é atoa que em alguns baralhos vemos o mesmo adorno em outras cartas, principalmente nas cartas reais como Reis e Cavaleiros:

 

O que causa alguma confusão em relação a imagem acima é que algumas faces pareces que se distinguem parecendo ter “emoções” diferentes, o que para alguns pode ser apenas por causa da falta de precisão para fazer desenhos iguais para a época, mas para outros, há sim um significado intrínseco ******nessas diferenças entre as faces.

Porém como não podemos afirmar com total certeza o que elas poderiam ser, elas podem ser literalmente qualquer coisa que queiramos ver, quando as vezes são apenas simples ombreiras. Mas particularmente, eu acredito que nada em uma carta do tarô está ali “por acaso”, todos os elementos, cores, posições estão ali para nos contar algo. Por essa razão, me inclino para a ideia de ser uma referência para as máscaras de comédia e tragédia, já que você estar em um carro militar indo para uma missão, pode ser tanto uma comédia, como uma tragédia (ou a consequência)

 

O fato delas estarem ali nos ombros, é que seria próximo aos ouvidos, e que, durante o trajeto do carro militar, o nosso personagem acaba “ouvindo” sussurros, piadas ou lamentações (ou até mesmo questionamentos de dúvida) sobre o que o príncipe está fazendo. As vezes durante uma tomada de decisão, no decorrer do processo temos dúvidas do tipo “será que estou fazendo a coisa certa?”, “será que isso vai dar certo?”, “será que não estou sendo egoísta?”, e ai temos que compreender se vamos dar voz ou não para esses questionamentos, muitas vezes internos, e que podem fazer relação com as emoções e também, com a Lua, e aspectos conscientes e inconscientes dos nossos desejos (o que acaba englobando todas as possíveis interpretações que sugeri no começo dessa sessão);

Essas dúvidas não devem ter um efeito paralisante, até por que o “dilema paralisante” já foi superado no Arcano número 6, os Enamorados, aonde pela dúvida, o personagem não sabe qual direção tomar. Aqui no carro, a direção já foi escolhida e já se está no caminho, e a dúvida pode ser algo a influenciar nossa potência ou determinação (e até mesmo a vontade: desistência). Não em vão que no tarô de Rider Waite, os cavalos a frente do carro mais parecem esfinges, que na lenda, ou você responde corretamente ao enigma da esfinge ou morre:

 

Mas isso é claro, é uma visão pessoal que gosto de manter com esse arcano, provavelmente para a maioria, pode ser apenas um adorno, e independente disso, a mensagem principal da carta ainda está lá.

Russell Sturgess apresenta uma ideia ainda mais interessante sobre um significado possível para as ombreiras:

Como profissional de saúde, observei que “ombro travado” costumava surgir quando as pessoas vivenciavam mudanças significativas em seu papel na vida. Mais ainda quando essa mudança foi forçada a eles por circunstâncias além de seu controle. Agricultores aposentados, mulheres na menopausa são exemplos. As ombreiras como armadura representam ou são um símbolo de como estabelecemos nosso valor por meio do que FAZEMOS no mundo. Na maioria dos casos, como nos manifestamos como adultos é o resultado de nossa programação infantil: Os ombros controlam os braços”.

Gosto muito dessa ideia, por que em tempos modernos, muitas vezes confundimos quem somos com o que fazemos, por exemplo, o nosso título no trabalho, o nosso papel social na nossa família e amigos etc, e tudo o que fazemos em “ação”, do empenho e direção dos nossos braços, pode ser prejudicado pelos ombros se estiverem vulneráveis ou feridos, e na ilustração, de todas as possibilidades de se retratar uma armadura, é muito especifico o adorno e destaque para as ombreiras.

 

O Carro e a saúde mental e corporal

A abordagem sobre a carta do carro que vimos até aqui, são possibilidades que vislumbramos analisando elementos da ilustração, conceitos históricos e o contexto em que os artistas e autores presenciavam quando publicaram tal conteúdo. Porém, uma abordagem bastante comum em autores modernos e tarólogos, é a ideia de que a carta do Carro também pode representar um aspecto de que o personagem (o príncipe), representa o espirito, e o carro, o corpo. Essa ideia não é algo novo, já que Platão e Hipócrates diziam algo parecido, Platão com algo como “sua alma nunca será tão boa quando seu preparo físico”, o “preparo físico” aqui não é algo como ser um atleta ou ter um corpo escultural, e sim, ter o seu corpo com bom condicionamento físico, treinado para desempenhar o máximo possível que ele possa oferecer:

“A falta de atividade física destrói a boa condição de qualquer ser humano, enquanto o movimento e o exercício físico metódico o salva e o preserva.” Platão.

“Falando genericamente, todas as partes do corpo que têm uma função, se usadas com moderação e exercitadas no labor ao qual estão acostumadas, tornam-se, em consequência, saudáveis, bem desenvolvidas, e envelhecem devagar: mas, se deixadas sem uso e ociosas, elas tornam-se expostas a doenças, defeituosas no crescimento, e envelhecem rapidamente.” Hipócrates.

Carta do Carro do Tango Tarô Argentino, https://www.instagram.com/p/CYCnTOHMOmr/

Carta do Carro do Tango Tarô Argentino, https://www.instagram.com/p/CYCnTOHMOmr/
 
 

Carta do Carro do Tarô Alquimico de Marselha, de Robert Place: a frase diz “Homem…. é mortal por causa do seu corto, mas é imortal por causa de sua alma”. https://robertmplacetarot.com/the-alchemical-tarot-of-marseilles/

Apesar de eu particularmente entender que isso é uma “simplificação” sobre tudo o que a carta pode significar, é uma interpretação útil, principalmente quando estamos em um contexto de um jogo onde a carta do carro está em conjunto com outras cartas, para formar uma narrativa ou resposta maior. E outra coisa que gosto dessa ideia é que se considerarmos o corpo como “carro”, ou seja, uma ferramenta, atribuímos um valor maior ou identidade sobre o que fazemos em detrimento sobre o que somos, afinal, somos o que somos pelo que fazemos? Ou somos o que somos pela nossa essência? Essa pergunta, não terá uma resposta fácil ou correta, já que cada individuo terá sua própria resposta, baseada na sua própria história:

“O que significa a história de todos os teus dias? Observe os hábitos que a compõe: serão o produto de pequenas e incontáveis covardias e preguiças, ou da tua coragem e da tua engenhosa razão?”… “Nem a salvação ou a perdição residem na técnica. Sempre ambivalentes, as técnicas projetam no mundo material nossas emoções, intenções e projetos. As ferramentas que construímos nos dão poderes mas, a escolha está em nossas mãos.

“Somos o que fazemos. Nos dias em que fazemos, existimos. Nos outros, apenas duramos. O que nós não fazemos não existe”. O famoso fragmento do Padro Antônio Vieira, que nos lembra não haver distinção entre o fazer e o fazer-se. “O que fazemos enquanto fazemos o que fazemos?”… Luan Unelmoija https://www.instagram.com/p/CTRx6k8nqsq/


Arcanos Dossie O Carro

Fontes e Referências

Jung e o Tarô – Uma jornada arquetípica (Sallie Nichols, Editora Cultrix);

https://pt.wikipedia.org/wiki/Caçador_(militar)

https://www.trilhasnouniverso.com.br/7-o-carro/

Agradecimento especial aos membros do grupo de Facebook “Tarot History” (https://www.facebook.com/groups/1457073457838971/), que me ajudaram com a pesquisa a respeito das ombreiras do personagem principal da carta do Carro:

  • Abdulaziz Gm;
  • Roos BP;
  • Tracey Darling;
  • Svartt;
  • Dianne DeMarco;
  • Adam West-Watson;
  • James D. Sass;
  • Ian Cumpstey;
  • Dan Pelletier;
  • Ferol Humphrey;
  • Michael M Hughes;
  • Steven Muir;
  • Anna Bengtsson;
  • Jesse Milton;

E agradecimento ao comentário especial de Russell Sturgess, autor no livro “The Spiritual Roots of the Tarothttps://www.facebook.com/catharcode/

 

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