Emília de Monteiro Lobato

Mas, afinal de contas, Emília, que é que você é?

Publicado em 20 de Maio de 2017

 

Emília, ao exercer sua capacidade de fala de maneira inventiva, crítica e irônica , desfere uma trajetória crescente de independência . Nessa trajetória , questiona verdades estabelecidas, propõe novos pontos de vista , desafia padrões e viola normas

Emília, uma bonequinha de pano de quarenta centímetros, protagoniza as obras infantis de Monteiro Lobato e incendeia a imaginação de todos os seus leitores. Inferniza, ao mesmo tempo, a vida de quem quer estudá-la , embaralhando de propósito os fios que poderiam tecer sua história .

Ela nasce em A menina do narizinho arrebitado ( 1920) — Emília inicia suas memórias (publicadas em 1936) parodiando deslavadamente o início da famosa história de Robinson Crusoé:

Nasci no ano de …( três estrelinhas), na cidade de …( três estrelinhas) filha de gente desarranjada … Quando o Visconde de Sabugosa , escriba compulsório das memórias da boneca lhe pergunta:

– Por que tanta estrelinha ? Será que quer ocultar a idade?

Emília responde sem titubear, e como sempre, sem papas na língua:

– Não. Isso é apenas para atrapalhar os futuros historiadores, gente muito mexeriqueira (…)

Mas qual é o poder desta figurinha que tão ousada e presunçosamente desafia a todo-poderosa tribo do historiadores? Como já se disse, Emília, nasceu boneca de pano, de trapo de macela e ficou sendo a companheira preferida de Narizinho. Narizinho era o apelido de Lúcia , neta de Dona Benta, velhota simpática de mais de sessenta anos, óculos de ouro na ponta do nariz e dona do Sítio do Pica Pau Amarelo.

Emília foi fabricada com retalhos de uma saia velha, olhos de retrós e recheio de macela por Tia Nastácia , cozinheira e faz-de-tudo no sítio de Dona Benta .

Em diferentes momentos da obra infantil de Monteiro Lobato, diferentes narradores apresentam Emília ao leitor . A estreia da boneca na primeira história infantil de Lobato ocorre num texto muitas vezes republicado e profundamente alterado nas várias versões posteriores. Nesta versão primeira, no entanto, se o leitor já percebe a genialidade do escritor, não tem ainda muitas razões para antecipar a excepcionalidade de Emília. Só alguns …

Chamada pelo narrador de Excelentíssima Senhora Dona Emília , a boneca é apresentada, na obra que inaugura o gênero infantil moderno no Brasil , como uma boneca de pano, fabricada com pele preta e muito feiosa, pobre, com seus olhos de retrós preto e as sobrancelhas tão lá em cima que é ver uma cara de bruxa . Mas apesar disso, Narizinho quer muito bem à Sra. Dona Emília, vive a conversar com ela, e não se deita sem primeiro acomodá-la numa redinha armada entre dois pés de cadeira.

Bem mais tarde, em suas memórias, Emília passa recibo dessas feições de seu antigo retrato , assumindo com desembaraço sua feiura e a pobreza simplória dos materiais de que é feita :

– (…) nasci de uma saia velha de Tia Nastácia. E nasci vazia. (…) Nasci, fui enchida de macela (…) e fiquei no mundo feito uma boba, de olhos parados como qualquer boneca. Feia. Dizem que fui feia que nem uma bruxa. Meus olhos Tia Nastácia os fez de linha preta. (…)

Embora já na estréia da boneca em letra impressa o leitor seja informado de que Narizinho vive a conversar com ela , esta menção à fala de Emília não parece torná-la muito especial. Em primeiro lugar, porque , provavelmente desde sempre e ao redor de toda terra, todas as crianças conversam com seus brinquedos. E em segundo lugar, porque os anos vinte do século passado brasileiro já conheciam bonecas que falavam papai e mamãe . Provavelmente importadas, e com certeza bastante caras, estas bonecas high tech faziam o encanto de suas donas e a tristeza de quem não podia tê-las.

Por isso as conversas que Narizinho tem com Emília nas primeiras versões da história não parecem conferir excepcionalidade nenhuma à boneca. A excepcionalidade de Emília começa bem mais para frente, quando ela começa a falar de verdade :

– Fiquei falante com uma pílula que o célebre Doutor Caramujo me deu

Todas as histórias infantis de Monteiro Lobato contam aventuras de tirar o fôlego, sobretudo o fôlego de leitores da primeira metade do século passado, como testemunham as inúmeras cartas que o escritor recebia de crianças que devoravam seus livros e o adoravam . Através de aventuras vividas dentro ou fora do sítio, nas histórias lobatianas , a prosaica paisagem rural brasileira se transfigura pela força da imaginação das personagens . A saga estende-se pelos dezessete grossos volumes da série infantil, ao longo dos quais foram publicados os vinte títulos que constituem a versão definitiva — organizada pelo próprio autor- da obra infantil lobatiana, publicada em 1947 com ilustrações de André Leblanc.

De lá para cá, as histórias migraram para diferentes mídia: quadrinhos, rádio, televisão e agora homepages hospedaram e continuam hospedando a turma do sítio. As histórias incluem desde aventuras por assim dizer domésticas , até excursões pelos quatros cantos do universo . É , aliás, nos limites das terras de Dona Benta , o ribeirão que passa por detrás do sítio — no Reino das Águas Claras- que o leitor é apresentado a Emília. Viajando tempo e espaço, céus terras e mares, verdadeiros ou imaginários, Emília deixa marcas de sua personalidade tanto em planetas, estrelas e cometas que percorre junto com Narizinho e Pedrinho numa divertida viagem espacial, quanto no mundo antigo, quando contracena com personagens da Grécia clássica como o herói Hércules. um centauro ou o político ateniense Péricles.

De boneca de pano como nasceu , a trajetória da boneca sofre alterações significativas a partir do momento em que aprende a falar graças a uma pílula falante do Dr. Caramujo. A solução pílula foi aventada depois de Narizinho recusar, por razões humanitárias, um transplante de língua de papagaio . A consulta da boneca com o médico da corte do Príncipe Escamado é antológica:

Veio a boneca. O Doutor escolheu uma pílula falante e pôs-lhe na boca.

– Engula de uma vez ! disse Narizinho ensinando à Emília como se engole pílula. E não faça tanta careta que arrebenta o outro olho.

Emília engoliu a pílula muito bem engolida, e começou a falar no mesmo instante. A primeira coisa que disse foi:

Estou com um horrível gosto de sapo na boca . E falou, falou, falou mais de uma hora sem parar.

Falou tanto que Narizinho, atordoada , disse ao doutor que era melhor fazê-la vomitar aquela pílula e engolir outra mais fraca.

– Não é preciso — explicou o grande médico. Ela que fale até cansar. Depois de algumas horas de falação, sossega e fica como toda gente. Isso é fala recolhida , que tem de ser botada para fora.

E assim foi. Emília falou três horas sem tomar fôlego. Por fim calou-se.

Mas que se previnam os leitores ingênuos e incautos : calou-se, nada!

Daí para frente, Emília será para sempre, uma falante de língua afiadíssima ! Ou seja: a falação que, no diagnóstico do Dr. Caramujo era consequência temporária da fala por tanto tempo recolhida será a marca registrada de Emília, apontada em diferentes momentos por todos e até pelo próprio narrador, que a ela se refere como torneirinha de asneiras . Bendita torneirinha, e benditas asneiras ! Pois é exatamente a capacidade de fala , e seu ilimitado exercício a condição essencial para que Emília desempenhe a importante função que é a sua em todas as aventuras vividas dentro e fora do sítio do Pica Pau Amarelo. Neste sítio , de que o narrador fornece traços realistas que se fixam para sempre na memória dos leitores, a torneirinha de asneiras de Emília é um achado. Pois é ela que dá vida e sentido mágico à paisagem convencional , onde se ouve porteira que ringe como as de verdade, ou se pesca no ribeirão que corre por entre pedras, ou se chupam jabuticabas nas jabuticabeiras carregadas de frutas e, às vezes, de vespas. . Não há espaço do sítio que não carregue marcas de Emília. É por isso que ela arrebata a atenção de todos, personagens e leitores.

É graças a esta Emília falante, em cuja fala uma lógica implacável e sem papas na língua se alterna com um surrealismo cheio de “non-sense” e trocadilhos , que a atuação das outras personagens lobatianas ganha originalidade. Emília sabe falar e, pela fala, convencer os outros de seus pontos de vista, o que faz dela ponto de partida das aventuras mirabolantes narradas nas histórias.

Como outros tantos heróis tradicionais da literatura infantil , os de Lobato também são invejáveis , no sentido de serem figuras com as quais os leitores se identificam facilmente . Quem não queria ser criança como Narizinho ou como Pedrinho ? E quem não queria conviver com crianças como eles ? Todos queriam . Como todas as personagens infantis bem construídas , eles manifestam curiosidade pelo novo , têm desejos e buscam a satisfação deles ; estão sujeitos a normas e padrões de comportamento, mas na busca da satisfação de seus desejos desobedecem proibições , encontram aliados e adversário, são auxiliados por objetos com propriedades mágicas … No mundo do Pica Pau Amarelo, tudo é , aparentemente, igual a tantos outros heróis e histórias de tantos outros livros . O que faz a diferença dos livros de Monteiro Lobato é Emília, definitivamente estrela e musa de leitores e leitoras .

Ao contrário das outras personagens lobatianas , cuja personalidade se mantém estável ao longo de todos os títulos da série, Emília, ao exercer sua capacidade de fala de maneira inventiva, crítica e irônica , desfere uma trajetória crescente de independência . Nessa trajetória , questiona verdades estabelecidas, propõe novos pontos de vista , desafia padrões e viola normas, sendo lida , em função destes predicados, como porta voz de Monteiro Lobato , também ele um intelectual crítico e participante de todas as questões importantes da primeira metade do século XX, sobre as quais tomou partido, exprimindo suas posições sem medo nem papas na língua.

– Exigente ! Você já anda bem famosinha no Brasil inteiro, Emília, de tanto o Lobato contar suas asneiras. Ele é um enjoado muito grande. Parece que gosta mais de você do que de nós — conta tudo de jeito que as crianças acabam gostando mais de você do que de nós. É só Emília pra cá , Emília pra lá , porque a Emília disse, porque a Emília aconteceu . Fedorenta…

Tradicionalmente, varinhas de condão, poções mágicas e fórmulas verbais abstrusas são os recursos pelos quais o maravilhoso interfere no real . Da varinha de condão da fada madrinha de Cinderela ao Abre-te Sésamo de Aladim o maravilhoso tradicional resguarda uma certa zona de mistério relativa ao seu modus operandi , que talvez faça parte do seu fascínio. No caso de Lobato, porém, muito do maravilhoso é fruto da tecnologia, ou da paródia da tecnologia de que Emília vive cercada e que não poucas vezes toma em suas mãos.

A fala de Emília , por exemplo, deve-se a uma pílula prescrita e tomada ao longo de um procedimento médico detalhadamente descrito e só por razões humanitárias preferido como alternativa ao transplante de língua de papagaio . Definitivamente, a hipótese era avançadíssima para uma época em que transplantes não se incluíam no horizonte da medicina . Também numa cena que parodia procedimentos cirúrgicos, o Visconde só ganha senso de humor quando transplantam para sua barriga páginas de um livro de humor… Também o pó de pirlimpim e o super pó, meio de transporte pelo qual as personagens todas se transportam no tempo e no espaço não foi oferta de nenhuma entidade maravilhosa, mas sim fruto de aturadas pesquisas do Visconde em seu laboratório . O Visconde é sábio, mas Emília é quem manda nele.

Emília domina inteiramente o Visconde, fazendo-o fazer todas as suas vontades, maiores e menores e, assim, sua aliança com ele transforma-se numa aliança com a ciência e com a tecnologia . Aliança que vai se estreitar mais e mais, ao longo da obra de Lobato. Em A reforma da Natureza (1941) e em A chave do Tamanho (1942), Emília realiza suas ações mais radicais, manifestando-se, através delas, e com recurso à tecnologia, a força crítica e política da literatura infantil lobatiana.

As duas obras têm por cenário a segunda guerra mundial, que durou de 1939 a 1945. A Europa pegava fogo na época de lançamento de ambos os livros , e o conflito funciona como o cenário que em A reforma da natureza emoldura e em A chave do tamanho inspira as ações de Emília. Num anacronismo curioso ainda a ser explicado por pesquisadores , o livro A reforma da natureza de 1941 fala de uma situação futura, onde, terminada a guerra, uma Europa em frangalhos pede auxílio de Dona Benta e Tia Nastácia:

Quando a guerra da Europa terminou, os ditadores, reis e presidentes cuidaram da discussão da paz. Reuniram-se num campo aberto , sob uma grande barraca de pano, porque já não havia cidades: todas haviam sido arrasadas pelos bombardeios aéreos . E puseram-se a discutir, mas por mais que discutissem, não saía paz nenhuma,. Parecia a continuação da guerra, com palavrões em vez de granadas e perdigotos em vez de balas de fuzil . (…………..) Eis explicada a razão do convite a Dona Benta, tia Nastácia e o Visconde de Sabugosa para irem representar a Humanidade e o Bom senso na Conferência de Paz de 1945;

Se o título A reforma da natureza não precisa de explicações, pois anuncia exatamente o que a história conta, outro é o caso de A chave do tamanho que, para ser um título tão autoexplicativo quanto o do livro que o precedeu, precisava mudar para A reforma da sociedade . Em ambas as obras, Emília interfere voluntaria e profundamente na ordem das coisas . Interfere na ordem do mundo natural em A reforma da natureza e na ordem social e política, através da miniaturização da humanidade, em A Chave do tamanho . Por tematizarem transformações profundas no âmbito da natureza e da cultura , estas duas obras manifestam o traço ao mesmo tempo crítico e revolucionário da personalidade de Emília, agora plenamente amadurecida.

A guerra acaba, é verdade, mas, acabado o tamanho, acaba também a possibilidade de sobrevivência de uma cultura baseada, como a antiga, na estatura adulta do ser humano. Numa viagem ao redor do mundo, Emília e o Visconde testemunham os esforços da humanidade para se adaptar à nova estatura e, a partir dela, reformatar pactos e valores da sociedade.

Emília deixa uma pulga atrás das orelhas dos leitores, que, com a falante e espevitada boneca aprendem a perguntar : e se o mundo fosse diferente ? questão que sobeja para explicar porque esta criatura de pano e macela, é das mais sedutoras da literatura brasileira e mora no coração dos leitores de Monteiro Lobato.

Não é difícil associar essa incrível personagem, a arquétipos, principalmente ao Loco do Tarô;

 

Memórias de Emília

De tanto Emília falar em “minhas Memórias” que uma vez Dona Benta perguntou:

– Mas, afinal de contas, bobinha, que é que você entende por memórias?

– Memórias são a história da vida da gente, com tudo o que acontece desde o dia do nascimento até o dia da morte.

– Nesse caso — caçoou Dona Benta -, uma pessoa só pode escrever memórias depois que morre…

– Espere — disse Emília. — O escrevedor de memórias vai escrevendo, até sentir que o dia da morte vem vindo. Então pára; deixa o finalzinho sem acabar. Morre sossegado.

– E as suas Memórias vão ser assim?

– Não, porque não pretendo morrer. Finjo que morro, só. As últimas palavras têm de ser estas: “E então morri…”, com reticências. Mas é peta. Escrevo isso, pisco o olho e sumo atrás do armário para que Narizinho fique mesmo pensando que morri. Será a única mentira das minhas Memórias. Tudo mais verdade pura, da dura — ali na batata, como diz Pedrinho.

Dona Benta sorriu.

– Verdade pura! Nada mais difícil do que a verdade, Emília.

– Bem sei — disse a boneca. — Bem sei que tudo na vida não passa de mentiras, e sei também que é nas memórias que os homens mentem mais.

Quem escreve memórias arruma coisas de jeito que o leitor fique fazendo uma alta ideia do escrevedor. Mas para isso ele não pode dizer a verdade, porque senão o leitor fica vendo que era um homem igual aos outros. Logo, tem de mentir com muita manha, para dar ideia de que está falando a verdade pura.

Dona Benta espantou-se de que uma simples bonequinha de pano andasse com ideias tão filosóficas.

– Acho graça nisso de você falar em verdade e mentira como se realmente soubesse o que é uma coisa e outra. Até Jesus Cristo não teve ânimo de dizer o que era a verdade. Quando Pôncio Pilatos lhe perguntou: “Que é a verdade?”, ele, que era Cristo, achou melhor calar-se. Não deu resposta.

– Pois eu sei! — gritou Emília. — Verdade é uma espécie de mentira bem pregada, das que ninguém desconfia. Só isso.

Dona Benta calou-se, a refletir naquela definição, e Emília, no maior assanhamento, correu em busca do Visconde de Sabugosa. Como não gostasse de escrever com a sua mãozinha, queria escrever com a mão do Visconde.

Visconde — disse ela -, venha ser meu secretário. Veja papel, pena e tinta. Vou começar as minhas Memórias.

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