Formas de renascimento: Metempsicose, Reencarnação, Ressurreição e Transformação

Abordagem psicológica.

Publicado em 18 de Setembro de 2016

 

E se é verdade que nosso conhecimento foi adquirido antes de nosso nascimento, e que o perdemos no momento em que viemos ao mundo, que, posteriormente, mediante o exercício de nossos sentidos sobre objetos sensíveis, recuperamos o conhecimento de que antes dispúnhamos, supondo que aquilo a que damos o nome de aprendizagem se caracterizará como a recuperação de nosso próprio conhecimento… (Platão)

MetempsicoseO conceito de renascimento é muito facetado. Em primeiro lugar destaco a metempsicose, a transmigração da alma. Trata-se da ideia de uma vida que se estende no tempo, passando por vários corpos, ou da sequência de uma vida interrompida por diversas reencarnações. O budismo especialmente centrado nessa doutrina — o próprio Buda vivenciou uma longa série de renascimentos — não tem certeza se a continuidade da personalidade é assegurada ou não; em outras palavras, pode tratar-se apenas de uma continuidade do karma. Os discípulos perguntaram ao mestre, quando ele ainda era vivo, acerca desta questão, mas Buda nunca deu uma resposta definitiva sobre a existência ou não da continuidade da personalidade.

ReencarnaçãoA segunda forma é a reencarnação, que contém o conceito de continuidade pessoal. Neste caso, a personalidade humana é considerada suscetível de continuidade e memória; ao reencarnar ou renascer temos, por assim dizer potencialmente, a condição de lembrar-nos de novo das vidas anteriores, que nos pertenceram, possuindo a mesma forma do eu da vida presente. Na reencarnação trata-se em geral de um renascimento em corpos humanos.

Ressurreição (resurrectio). Uma terceira forma é a ressurreição, pensada como um ressurgir da existência humana, após a morte. Há aqui outro matiz, o da mutação, da transmutação, ou transformação do ser. Esta pode ser entendida no sentido essencial, isto é, o ser ressurrecto é um outro ser; ou a mutação não é essencial, no sentido de que somente as condições gerais mudaram como quando nos encontramos em outro lugar, ou em um corpo diferentemente constituído. Pode tratar-se de um corpo carnal, como na crença cristã de que o corpo ressurge. Em nível superior, este processo não é compreendido no sentido material grosseiro, mas se considera que a ressurreição dos mortos é um ressurgir do corpus gloríficationis, do subtle body (corpo sutil), no estado de incorruptibilidade.

RenascimentoA quarta forma diz respeito ao renascimentoem outras palavras, ao renascimento durante a vida individual. A palavra inglesa rebirth é o equivalente exato da palavra alemã Wiedergeburt (renascimento) e parece não existir no francês um termo que possua o sentido peculiar do “renascimento”. Essa palavra tem um matiz específico. Possui uma conotação que indica a ideia de re­novatio, da renovação ou mesmo do aperfeiçoamento por meios mágicos. O renascimento pode ser uma renovação sem modificação do ser, na medida em que a personalidade renovada não é alterada em sua essência, mas apenas em suas funções, partes da personalidade que podem ser curadas, fortalecidas ou melhoradas. Estados de doença corporal também podem ser curados através de cerimônias de renascimento.

Outra forma ainda é uma mutação propriamente dita, ou seja, o renascimento total do indivíduo. Neste caso, a renovação implica mudança da essência, que podemos chamar de transmutação. Trata-se da transformação do ser mortal em um ser imortal, do ser corporal no ser espiritual, do ser humano num ser divino. Um exemplo muito conhecido é o da transfiguração miraculosa de Cristo, ou a subida ao céu da Mãe de Deus com seu corpo, após a morte. Representações semelhantes podem ser encontradas no Fausto, Segunda Parte, isto é, a transformação de Fausto no Menino e depois no Dr. Mariano.

TransformaçãoA quinta forma, finalmente, é o renascimento indireto. Neste caso, a transformação não ocorre diretamente pelo fato de o homem passar por morte e renascimento, mas indiretamente pela participação em um processo de transformação como se este se desse fora do indivíduo. Trata-se de uma participação ou presença em um rito de transformação. Pode ser uma cerimônia como a missa, por exemplo, em que se opera uma transubstanciação. Pela presença no ritual o indivíduo recebe a graça. Nos mistérios pagãos também existem transformações semelhantes, em que o neófito também recebe a graça, tal como sabemos acerca dos mistérios de Elêusis. Lembro-me da profissão de fé do neófito eleusino, que enaltece o efeito da graça sob a forma da certeza da imortalidade.

O renascimento não é um processo de algum modo observável. Não podemos medi-lo, pesar ou fotografá-lo; ele escapa totalmente aos nossos sentidos. Lidamos aqui com uma realidade puramente psíquica, que só nos é transmitida indiretamente através de relatos. Falamos de renascimento, professamos o renascimento, estamos plenos de renascimento — e esta verdade nos basta. Não nos preocupamos aqui com a questão de saber se o renascimento é um processo de algum modo palpável. Devemos contentar-nos com a realidade psíquica. No entanto é preciso acrescentar que não estamos nos referindo à opinião vulgar acerca do “psíquico” que o considera um nada absoluto ou algo menos do que um gás. Muito pelo contrário, a meu modo de ver a psique é a realidade mais prodigiosa do mundo humano. Sim, ela é a mãe de todos os fatos humanos, da cultura e da guerra assassina. Tudo isso é primeiramente psíquico e invisível. Enquanto permanece “unicamente” psíquico não é possível experimentá-lo pelos sentidos, mas apesar disso trata-se indiscutivelmente de algo real. O fato de as pessoas falarem de renascimento e de simplesmente haver um tal conceito, significa que também existe uma realidade psíquica assim designada. Como essa realidade é constituída, só o podemos deduzir a partir de depoimentos. Se quisermos descobrir o significado do renascimento, devemos interrogar a história para saber quais as acepções que esta lhe dá.

O “renascimento” é uma das proposições mais originárias da humanidade. Todas as proposições referentes ao sobrenatural, transcendente e metafísico são, em última análise, determinadas pelo arquétipo e por isso não surpreende que encontremos afirmações concordantes sobre o renascimento nos povos mais diversos. Um acontecimento psíquico deve subjazer a tais proposições. À psicologia cabe discutir o seu significado, sem entrar em qualquer conjectura metafísica e filosófica. Para obtermos uma visão abrangente da fenomenologia das vivências de transformação é necessário delimitar essa área com mais precisão. Podemos distinguir principalmente dois tipos de vivência: primeiro, a vivência da transcendência da vida, e, segundo, a de sua própria transformação.

Um exemplo vivo do drama do mistério que representa a permanência e a transformação da vida é a missa ou cultos evangélicos. Se observarmos os fiéis durante o oficio litúrgico, podemos notar todos os graus de participação, da simples presença indiferente até a mais profunda compenetração emocionada. Os grupos masculinos que se aglomeram à porta da saída, conversando sobre coisas mundanas, fazendo o sinal da cruz e se ajoelhando mecanicamente partilham do ritual sagrado apesar de sua dispersão, pela simples presença no espaço cheio de graça. Na missa Cristo é sacrificado através de um ato exterior ao mundo e atemporal, ressurgindo novamente na substância transformada pela consagração. A morte sacrifício no rito não é uma repetição do evento histórico, mas um ato eterno que ocorre por primeira e única vez. A vivência da missa é pois participação em uma transcendência da vida, que ultrapassa todas as barreiras de espaço e tempo.

Muitas vivências místicas têm um caráter semelhante: representam uma ação em que o espectador fica envolvido, embora sua natureza não mude necessariamente. Do mesmo modo, muitas vezes os sonhos mais belos e impactantes não têm efeito duradouro ou transformador sobre o sonhador. Este pode sentir-se impressionado, sem contudo ver nisso obrigatoriamente um problema. Neste caso o sucedido permanece “do lado de fora”, como uma ação ritual executada por outros. Tais formas mais estéticas de vivência devem ser cuidadosamente destacadas das que indubitavelmente envolvem mudanças na natureza da pessoa.

Transformações da personalidade não são ocorrências raras. Na realidade, elas desempenham um papel considerável na psicopatologia, embora sejam diversas das vivências místicas que acabamos de descrever e às quais a investigação psicológica não tem acesso fácil. No entanto, os fenômenos que a seguir examinaremos pertencem a uma esfera bastante familiar à psicologia.

Diminuição da personalidadeUm exemplo da alteração da personalidade no sentido da diminuição é-nos dado por aquilo que a psicologia primitiva conhece como lost of soul (perda de alma). A condição peculiar implícita neste termo corresponde na mente do primitivo à suposição de que a alma se foi, tal como um cachorro que foge à noite de seu dono. O estado de desânimo e paralisação da vontade pode aumentar a ponto de a personalidade desmoronar, por assim dizer, desaparecendo a unidade da consciência; as partes isoladas da personalidade tornam-se autônomas e através disso perde-se o controle da consciência. Criam-se assim, por exemplo, campos anestesiados ou amnésia sistemática. Esta última é um “fenômeno histérico de perda”. Esta expressão médica corresponde à lost of soul.

Transformação no sentido da ampliação. A personalidade, no início, é raramente aquilo que será mais tarde. Por isso existe pelo menos na primeira metade da vida a possibilidade de ampliação ou modificação da mesma. Ela pode ocorrer por influência exterior e isso através de novos conteúdos vitais que afluem e são assimilados. Neste caminho pode-se fazer a experiência de um acréscimo essencial da personalidade. Por isso é freqüente supor que tal ampliação venha exclusivamente de fora e nisto se baseia o preconceito de que nos tornamos uma personalidade na medida em que recolhermos maximamente as experiências. Quanto mais seguirmos esta receita, pensando que todo acréscimo só vem de fora, tanto mais empobrecemos interiormente. Assim, pois, se formos tocados por uma grande ideia de fora, devemos compreender que ela só nos toca porque há algo em nós que lhe corresponde e vai ao seu encontro.

Nessas três horas que aqui estivemos
A passear, de duas sombras dispusemos
Como companhia, por nós mesmos produzidas;
Mas agora, que com o sol a pino estamos,
Essas sombras pisamos;
E a bela clarez a todas as coisas são reduzidas.
(John Donne, “Uma preleção sobre a sombra”)

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Fontes e Referências

Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo — C.G. Jung (Obras completas, editora Vozes 11ª edição);

 

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