O Castelo Animado

Quando um artista dá tudo de si em um trabalho: a aversão de Miyazaki por guerras

Publicado em 03 de Julho de 2020

 

Quando um artista dá tudo de si em um trabalho, e consegue realizar uma obra universalmente amada e querida, considerada por todos como sua obra-prima, dificilmente ele conseguirá se superar em um trabalho futuro, e, devido as expectativas gerais em cima dele, provavelmente muitos se decepcionarão com o projeto sucessor. Foi assim com a Disney, durante a renascença, depois do lançamento de O Rei Leão, foi assim com a Pixar e Toy Story 3, e é assim com Hayao Miyazaki e A Viagem de Chihiro. No entanto, enquanto com os dois primeiros exemplos o trabalho que seguiu suas ditas “obras primas” eram realmente falhos (para não dizer ruins), com o diretor japonês a queda não foi tão drástica assim. Apesar de O Castelo Animado não ter o mesmo impacto que seu antecessor teve, principalmente com os críticos, ainda colecionou elogios e críticas favoráveis a ele, sem falar que é um filme extremamente querido entre os fãs de Hayao, que não o consideram ruim, e, inclusive, os colocam junto de Chihiro, como se os dois filmes fossem igualmente bons e não devessem nada um ao outro.

Quanto a mim, eu realmente adoro O Castelo Animado, acho um filme totalmente criativo e esteticamente lindo, características obrigatórias em qualquer filme de Miyazaki. No entanto, apesar de não achá-lo ruim (não considero nenhum filme de Miyazaki totalmente ruim — levando em conta que ainda não vi Vidas ao Vento), consigo entender de onde vem as principais críticas à esta obra. Não é um filme perfeito, mas, pessoalmente, é um que eu amo muito.

Baseado em um livro da escritora britânica Dianna Wyne Jones, O Castelo Animado se passa em um universo onde magia existe, e bruxas e feiticeiros são figuras comuns na sociedade. Sophie é uma jovem e tímida chapeleira, que mora em um reino que, atualmente, se encontra em guerra com outro país. Um belo dia ela encontra um jovem e charmoso feiticeiro, que a acompanha até sua casa, sem saber que o rapaz em questão era o famoso Howl, extremamente popular entre as mulheres, mas um inimigo do governo, por se recusar a tomar parte na guerra, enquanto as demais pessoas com poderes mágicos estavam sendo recrutadas para lutar no conflito.

O encontro entre Sophie e Howl chama a atenção da Bruxa da Terra Abandonada, outra figura muito famosa entre as pessoas do reino, conhecida por sua perversidade e crueldade. Ela aparece para Sophie uma noite e a transforma em uma senhora idosa, com a condição de que ela não poderia falar sobre o feitiço com ninguém.

A protagonista, então, foge de sua casa, e, enquanto caminha por um campo, procurando um lugar para ficar, se depara com um castelo móvel, que anda sobre quatro patas. A senhora entra no local e se instala ali, sem saber que aquele é justamente o castelo de Howl. Quando o feiticeiro retorna, ela se apresenta como a nova faxineira do castelo, e passa a morar ali. No decorrer do filme, Sophie e os outros habitantes daquele lugar (tanto Howl, quanto Calcifer, um demônio em forma de uma chama que é responsável por movimentar o castelo, e Markl, um garotinho, aprendiz de feiticeiro) vão se aproximando e criando laços uns com os outros, aos poucos se transformando em uma família, enquanto a guerra cresce cada vez mais e os militares perseguem o bruxo, e ele tenta acabar com o conflito com as próprias mãos.

Mais uma vez me vi tendo que revelar algumas surpresas do filme para analisá-lo melhor, então deixo aqui um aviso de spoiler.

O maior tema que o filme aborda é a aversão de Miyazaki por guerras. Ele foi inspirado a fazer O Castelo Animado pela da Guerra do Iraque. Quando ganhou seu Oscar por A Viagem de Chihiro (premiação à qual ele se recusou a comparecer justamente em protesto contra a guerra, que acontecia na época), o diretor disse que tinha “muita raiva” em relação à Guerra do Iraque e então sentia “hesitação” em receber o prêmio. Inspirado por aquele conflito, o diretor quis criar um filme que não seria bem visto pela audiência estadunidense, e que colocasse o dedo na ferida, criticando as guerras e mostrando as nações que as causam como sendo egoístas e caprichosas.

De fato, ao longo do filme, o vilão principal do mesmo vai se mostrando o Estado. Como de costume, Miyazaki abre mão de maniqueísmos, e todos seus personagens demonstram possuir tanto um lado bom quanto um ruim; até mesmo a Bruxa da Terra Abandonada, que, em um primeiro momento, parece a vilã principal do filme, se transforma ao longo da história, e nós passamos a vê-la por um olhar mais generoso, entendendo suas fraquezas e fragilidades, enquanto ela, aos poucos, se torna uma pessoa melhor. A única personagem de O Castelo Animado que mantém uma postura hostil por todo o filme é Madame Suliman, a feiticeira oficial do rei.

Sophie a encontra pela primeira vez quando Howl a manda para o castelo real, em seu nome. Ela se passaria pela mãe do feiticeiro, e explicaria para o rei o porquê de ele não se engajar na guerra. Enquanto se direciona ao palácio, Sophie se encontra com a Bruxa da Terra Abandonada, que também estava indo ao castelo, tendo sido chamada lá pelo próprio rei. Ela está em uma carruagem, sendo carregada por criaturas mágicas de sua própria criação. No entanto, quando atravessa os portões do palácio, as tais criaturas desaparecem, e um guarda a informa que veículos não são permitidos daquele ponto em diante.

Na cena mais pesada do filme, somos forçados a ver Sophie e a Bruxa, duas senhoras já de uma certa idade, tentar subir as longas escadas do palácio. As duas fazem o percurso lentamente, ofegando e suando do início ao fim. Miyazaki não suaviza a situação, mostrando ao público toda a humilhação que as duas enfrentam naquele momento, principalmente a Bruxa, que antes era tão imponente, e agora demonstra toda a sua fraqueza, incapaz de subir as escadas. Tudo isso é visto pelos olhos dos guardas do palácio, que veem a situação, parados como estátuas e sem mover um dedo para ajudar as duas. Quando Sophie finalmente alcança o último degrau, e vê a outra mulher ainda lutando para subir, ela pede ao homem que veio recebê-la que mande alguém para a ajudar, para o que ele responde; “Nós somos proibidos de ajudar qualquer pessoa”. Nesta fala fica claro o individualismo do Estado, que está mais preocupado em lutar pelos próprios interesses, do que ouvir e auxiliar o seu povo, a quem ele deveria servir.

 

Tendo, finalmente, subido as escadas, Sophie é encaminhada ao encontro de Madame Suliman, uma senhora muito elegante e, aparentemente, gentil. Ela é educada com a protagonista, e, em um primeiro momento, parece interessada no que ela tem a dizer. Quando esta termina de falar, no entanto, a mulher a comunica, em um tom frio, e ainda com uma voz suave e gentil, que se Howl não tomar parte na guerra ela o caçará e o privará de seus poderes, assim como ela havia feito com A Bruxa da Terra Abandonada. Naquele momento, dois soldados arrastam a bruxa até o encontro das duas mulheres. Ela não estava mais na sua forma anterior, e agora se encontrava como uma senhora extremamente idosa e pequena, quase murcha, com um olhar perdido e desamparado, se agarrando à Sophie por ajuda, muito diferente da mulher poderosa e vultosa de antes, se mostrando frágil e desamparada.

Percebendo que Madame Suliman estava se deliciando vendo a humilhação da bruxa, tendo a atraído para uma armadilha, Sophie percebe toda a crueldade e mesquinharia daquela mulher, e do órgão que ela representa, mais preocupados em manter uma posição de poder, e se deixando levar pelo orgulho ao querer se vingar daqueles que não os obedecem, do que de governar corretamente, fazendo o que é melhor para o seu povo. Há, aí, uma clara referência ao estado americano, uma vez que Miyazaki acredita que a maioria das guerras são tolas e desnecessárias, e que boa parte das nações, no caso da Guerra do Iraque, os EUA, só entravam nelas para poder esbanjar seu poderio militar e exercer uma posição ameaçadora sobre o resto do mundo.

No filme, Miyazaki aproveita para desenhar, novamente, maquinarias de guerra, sobretudo aviões, com os quais ele não esconde sua paixão e fascinação. É curioso reparar a relação do diretor com estas máquinas, no entanto, porque, apesar de adorar desenhá-las e inseri-las em seus filmes, ele nunca as pinta de maneira positiva, sempre as usando para encorpar sua crítica e desdém pela guerra, tendo em vista que o principal papel destes aparelhos é causar destruição para onde quer que passem. Todos os equipamentos e máquinas de Miyazaki são sempre muito próprios, trazendo consigo um ar clássico e retro, mas, ao mesmo tempo, não sendo nada que já temos visto no passado, dando um toque futurístico a elas.

A natureza, como de praxe, também está presente. A personagem de Sophie é o principal porta-voz do amor do diretor pelo o que é natural. Ela ama andar pelos campos por onde o castelo caminha, e descansar em frente ao lago. Em uma cena, onde ela almoça ao ar livre, e depois fica sentada por lá, admirando a beleza daquela paisagem, a personagem diz “Eu nunca me senti tão em paz”, contrastando com o clima conflituoso que permeia a civilização humana. Em outra cena, onde Howl e Sophie caminham por um lindo campo de flores, onde há uma lagoa azul cristalina, e os dois admiram o local, um avião de guerra passa por cima deles, interrompendo a paz, e representando toda a ameaça e escuridão que os humanos trazem consigo para o mundo, contrastando com a paz de espírito disponibilizada pela natureza. Neste caso, o fato de o castelo de Howl, uma grande construção de ferro, caminhar pela natureza, representa que se é possível alcançar a paz e o equilíbrio entre os dois universos.

Miyazaki também critica no filme a sociedade moderna como um todo, e sua alienação. No começo da história, Sophie está andando pelas ruas e as demais pessoas estão celebrando, há uma grande festa na praça da cidade. A protagonista é a única que não parece estar feliz ali. Mesmo em guerra, as pessoas se distraem e comemoram, independente da destruição que está sendo gerada fora dali. A sociedade deste universo também parece ser bem fútil e consumista como um todo, com a mãe de Sophie sendo uma das principais representações dessa crítica na história, sempre falando sobre banalidades como roupas ou sobre dinheiro, estando prestes a se casar com um marido rico. Howl também é bem vaidoso no começo do filme, mas se transforma graças a Sophie. Sophie, aliás, parece ser a única personagem imune às banalidades e futilidades daquela sociedade, estando completamente infeliz ali, e só encontrando a felicidade quando sai da cidade grande e vai morar no castelo animado, tendo encontrado um lugar onde finalmente sinta que pertence.

Outro tema bastante importante em O Castelo Animado é a velhice e o amadurecimento. Muitas vezes personagens idosos, sobretudo mulheres, caem no estereótipo de serem apenas senhoras doces e amáveis, servindo apenas como conselheiras para os mais novos, e nunca protagonizando histórias e dramas próprios. Hayao quebra este clichê, colocando muitas mulheres idosas em posições de importância e poder no filme (não só Sophie, como A Bruxa da Terra Abandonada e Madame Suliman).

Apesar de ser tratada como uma maldição, a transformação da protagonista em uma senhora trás muitos pontos positivos para a mesma. Quando a vemos no começo da história, ainda jovem, Sophie é uma menina quieta e reprimida, vivendo sua vida mais pelos outros do que para si mesma (ela trabalha como chapeleira porque acredita que é o que o seu pai gostaria que ela fizesse, e não porque ela realmente gosta). Ao contrário das mulheres ao seu redor, como sua mãe e sua irmã, que são alegres e estão sempre conversando, fofocando e rindo, a protagonista se aliena do resto das pessoas, estando sempre quieta e isolada. Percebemos isto até nas roupas que ela usa. Enquanto as outras mulheres de sua cidade usam longos e exagerados vestidos e chapéus, típicos do século XIX, Sophie usa um vestido mais modesto, e menos grandioso (quando ela envelhece, ela diz que ao menos suas roupas finalmente combinam com ela, como se sua vestimenta fosse antiquada, típica de uma velha). Ela também se considera feia, ao contrário de sua irmã e sua mãe, que despertam a atenção dos homens.

No entanto, quando envelhece, Sophie finalmente perde seus medos e inseguranças, e começa a dizer o que pensa mais livremente. Ela consegue repreender Howl quando ele toma atitudes com as quais ela discorda, assim como enfrenta Madame Suliman quando as duas se encontram, coisas que a Sophie anterior não seria capaz de fazer. Neste sentido, a velhice é retratada no filme como um processo de amadurecimento, sendo necessária para que a protagonista confiasse mais em si mesma e consiga se libertar de suas amarras, que a mantinham em uma posição de repressão. No final do filme, quando Sophie retorna à sua idade original, seus cabelos continuam grisalhos, simbolizando todos os aprendizados de sua época como uma idosa, que continuaria levando consigo para o resto da vida.

A questão da idade também está presente na Bruxa da Terra Abandonada. Assim como Sophie, ela também via a velhice como uma maldição, sendo exatamente este o motivo pelo qual ela resolveu castigar a protagonista daquela maneira, pois, para ela, não havia castigo maior do que envelhecer. A bruxa usava seus poderes para se manter rejuvenescida e é apenas quando Madame Suliman retira-os que passamos a vê-la como ela realmente é, uma senhora baixinha e enrugada. A fachada cruel e perversa que ela usava eram para maquiar suas incapacidades e fraquezas, que ficam bem a mostra quando ela regride para sua idade normal, se mostrando muito dependente devido à sua idade avançada. No entanto, é apenas quando ela perde seus poderes e passa a viver como ela mesma, que a bruxa se reconecta com o seu lado humano, aprendendo os valores da compaixão quando vai morar no castelo de Howl e é tratada de forma amigável pelas pessoas que viviam ali, descobrindo o valor de se conviver em família e com pessoas as quais gostamos, não precisando nos esconder através de máscaras e usando da força para disfarçar nossas limitações. A fixação da bruxa com Howl pode ser compreendida também quando a vemos em sua nova forma. Ela queria ser amada, sobretudo por um homem jovem e atraente, para se sentir valorizada, mesmo já estando velha (em muitos momentos do filme ela diz que queria “possuir o coração” de Howl).

A compaixão, aliás, é outro grande elemento do filme, estando mais presente, sobretudo, na figura de Sophie. Howl, apesar de ser contra a guerra, usa de táticas violentas para lutar contra a mesma. Ele se transforma em um grande pássaro quando encontra com tropas militares, e as ataca, mas, aos poucos, ele vai perdendo sua humanidade e vai acabar se tornando o monstro pelo qual ele se transforma justamente para lutar contra os outros monstros (os feiticeiros recrutados pelo rei também são transformados em monstros e usados como armas pelos militares).

É aí que Sophie entra. Muitas pessoas veem a compaixão e a gentileza como ingenuidade e tolice, sobretudo em tempos de guerra, onde táticas ofensivas são tidas como a única saída. Miyazaki nos diz que não, que muitas vezes não perder a cabeça e se deixar levar pelos sentimentos ruins que nos cercam nestes momentos onde tudo e todos são envenenados pela guerra é mais difícil do que partir para o ataque e demanda muita sabedoria de alma e espírito. No final, é Sophie que consegue trazer Howl de volta para sua forma humana e salvar o dia, instaurando o final feliz com sua plenitude e compaixão, até mesmo com as pessoas que não retribuem suas gentilezas (é ela quem acolhe a Bruxa da Terra Abandonada quando esta perde seus poderes e retorna à sua forma idosa, mesmo que ela a tenha amaldiçoado). A gentileza e o carinho de Sophie também são o que fazem as pessoas gostarem dela, e não sua aparência física, que parece ser uma questão importante para diversos personagens do filme. Mesmo estando velha e não atraente, ela consegue fazer Howl se apaixonar por ela, devido a sua personalidade.

Howl, inclusive, é um personagem muito fútil no começo do filme. Ele é completamente vaidoso (a vaidade é uma característica comum a muitos personagens da história, tanto Howl, quanto a Bruxa e Madame Suliman), obcecado com a sua aparência e sem deixar que outras pessoas se aproximem dele. É apenas com Sophie que ele lembra como é a sensação de se conectar com outras pessoas, se apaixonando por ela, e, assim, sendo mais aberto às demais pessoas. Na realidade, a futilidade de Howl se dá porque, quando muito jovem, ele vendeu seu coração para um demônio, se tornando incapaz de sentir empatia pelos demais, virando um jovem egoísta e autocentrado. Quando conhece Sophie, ele finalmente consegue se relacionar com aquela parte de si mesmo novamente, se tornando uma pessoa melhor graças a ela.

 

O dito Castelo Animado do filme

Tanto o interior quando o exterior do castelo de Howl são muito feios e desorganizados. Na parte de dentro, ele é muito sujo, bagunçado e lotado de teias de aranhas. Quando Sophie se contrata como faxineira, ela finalmente o limpa e o organiza, o deixando limpo pela primeira vez em muito tempo. Esta limpeza é sentida também nas relações entre seus habitantes. Depois que Sophie passa a morar com eles, Calcifer, Howl e Markl deixam a relação distante que tinham e se conectam, formando, de fato, uma família, que mais tarde é aumentada pela Bruxa da Terra Abandonada e pelo cachorro de Madame Suliman, que, atraído pela compaixão de Sophie, deixa a vilã e segue a heroína. O castelo do lado de fora, uma construção totalmente enferrujada, que não tem uma forma muito bem definida, parecendo um conglomerado de construções diferentes juntas em uma só, representa a família que se forma entre esses personagens, todos vindos de lugares diferentes e que, em um primeiro momento, parecem não ter muito em comum, mas que encontram conforto uns nos outros e aprendem a se amar e a viver em harmonia.

O amor que Sophie traz àquele local também é retribuído a ela. A mulher vai gradualmente rejuvenescendo e voltando à sua forma normal com o passar do filme, a medida em que ela se sente acolhida e pertencendo ao local. Ela nunca sentiu que pertenceu com sua família e na cidade grande, mas, com Howl e seus amigos, ela finalmente encontra um lugar onde encontra pessoas como ela, todos deslocados, que se encontraram uns nos outros. Quando ela sente que esse sentimento de pertencimento é recíproco, e os personagens vão, aos poucos, a aceitando como parte da família, ela vai ficando mais jovem. O amor também tem um papel importante neste quesito, pois, sempre quando ela pensa em Howl, e fala do mesmo, ela retorna à sua forma original, sem nem perceber. Quando sua atenção se desvirtua do feiticeiro, ela volta a ser uma senhora idosa. No fim do filme, quando os personagens definitivamente se aceitam como uma grande e disfuncional família, e quando Sophie e Howl finalmente ficam juntos, é que ela pode, finalmente, quebrar o feitiço e voltar a ser jovem novamente.

Como sempre, o universo de O Castelo Animado é completamente original e único, sendo muitíssimo bem construído por Miyazaki, que não nos dá a impressão de ter criado um mundo incompleto ou incongruente. As particularidades e fantasias daquele mundo fazem sentido dentro do próprio, e percebemos a dedicação do diretor de dar uma personalidade própria a cada reino diferente com qual trabalha, todos muito diferentes entre si, e igualmente bem trabalhados.

Assim como em A Viagem de Chihiro, o diretor não sente a necessidade de explicar cada pormenor das regras e ambientes que ditam o seu mundo. O enfoque da narrativa, também como em Chihiro, é nos personagens e suas relações uns com os outros, e as fantasias que aparecem são apenas um realce ou detalhes, que melhoram a história e a deixam mais única. O problema em O Castelo Animado, e o que o difere de Chihiro, é que, ao contrário de seu predecessor, onde o foco narrativo era estritamente apenas na protagonista e em sua jornada, que, por acaso, se passava naquele mundo tão estranho, que servia apenas como plano de fundo e aumentava a sensação de descoberta e maravilha no espectador, aqui o universo é mais integral para a história, assim como o foi em Princesa Mononoke. Só que, em Mononoke, Miyazaki dedicou tempo para explicar o seu universo, o que não foi necessário fazer em Chihiro. Querendo seguir a fórmula de Chihiro também em O Castelo Animado, colocando o público naquele mundo inusitado e fantasioso junto com a protagonista, ficando perdido assim como ela com todas as possibilidades e inventividades daquele universo, Miyazaki abre mão de explicar os detalhes sobre aquele ambiente. Só que, aqui, assim como em Mononoke, os detalhes se fazem necessários para que entendamos o que está se passando, especialmente no terceiro ato do filme. Sem a explicação, o que está acontecendo fica confuso e muitos podem não entender de primeira (similar à Nausicaä e o Vale do Vento, onde a história, que constantemente crescia e tomava proporções maiores, não dava espaço para o espectador respirar e parar para refletir no que estava acontecendo, se tornando confusa em uma primeira assistida).

Diferente de Nausicaä, no entanto, as cores e a própria história que é contada em O Castelo Animado é mais leve, enquanto que, no outro filme, elas são mais densas e pesadas, o que afasta as crianças. O ambiente de O Castelo Animado é muito criativo e só esse senso de aventura e descoberta que permeia por ele já prende nossa atenção.

Os problemas com o filme só surgem mesmo no terceiro ato, que se torna muito conturbado e de difícil interpretação. A parte final do filme, onde muita coisa acontece ao mesmo tempo, se assemelha com o ritmo frenético de Nausicaä e o público se perde, especialmente pela confusão que Miyazaki faz ao escolher não explicar certos elementos, descasando com o resto do filme, que, em sua maioria, é de fácil de se entender e de se seguir.

A ideia do diretor de não explicar os detalhes daquele mundo também funciona em um primeiro momento, porque eles não são importantes para que acompanhemos a história, só retocam e cimentam o universo, que funciona apenas como o cenário, não sendo integrais para a narrativa. É apenas no final que essa integralidade se revela, o que ajuda na sensação de isolamento do terceiro ato em relação ao resto do filme. As imagens finais são muito bonitas, mas os simbolismos se tornam esotéricos demais e não facilitam na compreensão.

Um dos motivos de o final de O Castelo Animado parecer tão descasado de seu resto é pela tática de Miyazaki de não trabalhar com roteiros definidos, como eu já havia dito em Chihiro. Ao invés de já ter uma história pronta quando começa a produção de seus projetos, o diretor apenas tem o básico, e deixa que o filme se forme por conta própria. O filme se guia sozinho, ao invés de o diretor guiar o filme. Em alguns trabalhos, esta tática funciona muito bem, como em A Viagem de Chihiro, onde a história principal era bem simples, e a riqueza estava no ambiente onde a história se passava. Porém, com histórias mais rebuscadas como em O Castelo Animado, se corre o risco de que o projeto final fique bagunçado e incongruente, o que meio que aconteceu aqui, pelo menos em seu terceiro ato. Assim, ao invés de termos um filme perfeitamente formado como em Chihiro, este filme acaba ficando sem uma forma muito definida.

Outro problema que eu tive com o terceiro ato foi a facilidade com que tudo se resolve. Durante o filme todo, Miyazaki cria uma tensão e uma sensação de grandeza nos problemas que envolvem os personagens. A maneira com a qual ele retrata a guerra é muito real e verdadeira, a mostrando como a verdadeira vilã e geradora de destruição no filme. Apesar de eu apreciar a dose de realidade que o diretor coloca em seus universos, a misturando com os elementos fantásticos, ao mesmo tempo eu entendo que um desfecho se torna mais difícil do que se ele contasse suas histórias como apenas em uma batalha do bem contra o mal. Ao contrário de Chihiro, onde ele não se preocupou em extinguir os elementos ruins daquele universo e solucionar todos os problemas deste, passando a mensagem de que o mal sempre vai existir e cabe a nós fazermos escolhas que nos afastem deles, aqui ele tentou ir pelo caminho contrário e instaurar o final feliz absoluto.

Ironicamente, em Chihiro este final seria mais congruente do que em O Castelo Animado, que buscou, o tempo todo ser mais realista na sua abordagem, especialmente no que tange a guerra. Então, do nada, os “vilões” terem uma mudança de temperamento e desistam de seus planos apenas para que o filme se feche de forma feliz não casa com a forma que este mesmo filme abordou as relações interpessoais de seus personagens até o momento do desfecho. Não é nem como se tivesse havido uma grande batalha de épicas proporções que ensinam a lição dos malefícios da guerra para o Estado, como aconteceu em Mononoke. A Madame Suliman simplesmente observa o quão felizes Howl, Sophie e seus amigos estão e pensa “acho que a guerra já se alastrou por tempo demais, vou dar um fim nisso”. Isso não condiz nem com o personagem de Madame Suliman e nem com a forma realista que o filme buscou retratar o conflito até ali. Em um filme da Disney, o “final feliz” faria sentido, até porque as histórias românticas e guiadas pelos contos de fadas são a marca registrada da casa do Mickey. Mas, um filme de Miyazaki, que sempre buscou mesclar os elementos mágicos com uma dose de realismo, não condiz com esse tipo de desfecho. Me dá a impressão que o diretor não sabia como terminar esta obra e, não querendo a arrastar por muito mais tempo, apressou um final. Uma pena.

Tirando o terceiro ato e suas falhas, no entanto, considero O Castelo Animado um filme excelente. Até o desfecho do filme eu aprendi a apreciar, com as minhas constantes revisitações a ele. Este filme é definitivamente um daqueles onde você vai pegando um novo detalhe e percebendo novas nuances a cada re-assistida. Infelizmente, quando eu fiz o mesmo elogio à Princesa Mononoke e A Viagem de Chihiro, eu me referia só há detalhes, sendo que a história principal destas duas obras é de fácil compreensão logo de primeira, e fáceis de serem apreciadas. Aqui, a história começa bem, mas termina confusa, e, para mim, um dos deveres de um filme é saber se explicar bem ao espectador, sem que seja necessário assistir novamente, e O Castelo Animado falha neste ponto. No entanto, mesmo que confuso, é possível gostar de O Castelo Animado logo de primeira, ele não é um filme chato ou arrastado, e, em sua maioria, é uma divertida e excitante história de aventura, que fazem a jornada valer a pena, mesmo com suas falhas.

A animação, aqui, continua belíssima. Apesar de nunca ser especificado o reino onde a história se passa, ele é claramente inspirado em cidades europeias do século XIX e início do século XX, conceito que Miyazaki já havia trabalhado em O Serviço de Entregas da Kiki e em Porco Rosso. O diretor foi até a França estudar as paisagens que seriam utilizadas neste filme. O casamento entre animação tradicional e animação computadorizada continuou por aqui, com a tecnologia ajudando a aprofundar melhor os cenários e a dar mais movimentação à animação. Apesar de eu achar que as duas técnicas, novamente, entraram em sintonia, com o computador realçando os desenhos a mão, e não sendo distrativo, muitas críticas foram feitas a seu emprego neste filme. Diversas pessoas criticaram Miyazaki, o acusando de estar se desvirtuando de sua arte original, se apoiando demais no uso de computadores, que, segundo eles, tiraram o brilho da animação. Tanto as paisagens urbanas quanto as naturais são belíssimas, e as sequências de ação são muito bem-feitas, principalmente as de voo, que dão mais animação à história.

 

Hayao Miyazaki é um grande fã de Diana Wynne Jones, e trabalhar em cima de alguma obra dela parecia ser apenas uma questão de tempo para o diretor. Ainda assim, assim como em tudo o que toca, o diretor deu sua própria cara a história, ressaltando toda sua capacidade inventiva, sempre se superando na criação de universos próprios. Mesmo em projetos baseados em trabalhos de outros, Miyazaki consegue torná-los algo seu e dar sua personalidade para a criação, mostrando como é um dos criadores mais geniais vivos, e como não há limites para a sua mente e o que ela é capaz de criar.

Apesar de ter suas falhas, eu não posso negar que amo O Castelo Animado. Talvez seja porque, assim como Chihiro, este foi um dos primeiros filmes do diretor com o qual tive contato, tendo ido assisti-lo no cinema quando tinha sete anos (após o sucesso de A Viagem de Chihiro, a parceria de Miyazaki com a Disney continuou, e o filme foi distribuído amplamente pelo mundo, aumentando o alcance do diretor para fora do Japão, que continuaria a crescer). Hayao parece compartilhar do meu carinho com O Castelo Animado, tendo dito com todas as letras que este é seu filme favorito entre os quais ele realizou. O fato é que, quando se trata de Hayao Miyazaki, até seus filmes B são melhores do que a maioria das obras de outros diretores por aí, e O Castelo Animado está longe de ser um filme B.

Texto original de Miguel Serpa

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