Dossiê Arcanos Maiores #1: O Louco

Uma nova jornada sobre as cartas do Tarô

Publicado em 06 de Setembro de 2020

 

A aproximadamente dois anos, publiquei aqui no site, toda a descrição de cada uma das 78 cartas do tarô clássico. De lá para cá, muitas experiências e conversas depois, esse conhecimento se expandiu, e agora vou publicar todo esse aprendizado atualizado.

 

Introdução

Herman Melville, em Moby Dick, advertia seus leitores a não darem um passo sequer fora do caminho comum traçado pela sociedade: você se arrisca a não voltar. E no entanto, para quem estiver disposto a correr o risco, a jornada pode proporcionar alegria, aventura, e, finalmente, para quem tem a coragem de continuar, quando a terra da fantasia se torna mais apavorante do que alegre, o salto pode trazer conhecimento, paz e libertação

 

De uma forma interessante, o arquétipo do Louco aparece mais na mitologia do que na religião estruturada. Uma igreja institucionalizada dificilmente pode estimular as pessoas além dos limites das instituições. Em vez disso, as igrejas nos oferecem um abrigo seguro contra os terrores da vida. A mitologia leva direto ao centro desses terrores, e em qualquer cultura a paisagem mitológica inclui a imagem do ilusionista empurrando, espicaçando, cutucando os reis e heróis sempre que se desviam do mundo interior da verdade.

O arquétipo do Louco até encontrou sua expressão social, como o bobo da corte real. Todos nós conhecemos a imagem do “louco”, tirada do Rei Lear ( Shakespeare), a quem era permitido dizer ao rei verdade que ninguém mais ousaria exprimir. Hoje em dia, nossos comediantes e humoristas gozam, de certa forma, desse mesmo privilégio:

 

Em muitos países, um carnaval anual dá vazão a todas as loucuras reprimidas durante o resto do ano. O sexo é mais livre, várias leis são suspensas, as pessoas andam disfarçadas e o Rei dos Loucos é escolhido para presidir o festival. Hoje em dia, na Europa e na América do Norte, o dia primeiro de abril continua sendo “O dia do Louco de Abril”, um dia destinado a truques, trotes, e mentiras.

A palavra “fool” (louco, em inglês) deriva do latim follis, que significa “par de foles, cornamusa”. O nome do Louco em francês, Le Fou, cognato da palavra “fogo”, repete sua conexão com a luz e a energia. Como diz o trocadilho: “Eu sou Luz (light) e viajo leve (light).”

Ter um bobo na corte e nas casas de famílias nobres começou em tempos remotos e continuou até o século XVII. Essa prática dramatiza o fato de que precisamos dar espaço ao fator renegado em nós mesmos e admiti-lo em nossa corte interior, o que significa psicologicamente que precisamos reconhecê-lo. É geralmente uma boa ideia colocar o nosso Louco bem diante de nós, onde possamos trazê-lo de olho. Excluído da consciência, ele pode pregar-nos peças que, embora “inocentes”, são difíceis de apreciar. Aceito em nosso conselho interior, o Louco pode oferecer-nos ideias frescas e nova energia. Se quisermos ter o benefício da sua vitalidade criativa precisamos aceitar-lhe o comportamento não-convencional.

Outra técnica utilizada em épocas anteriores para garantir a sociedade contra explosões inesperadas de impulsos destrutivos latentes consistia em pôr de parte certos períodos de permissividade universal, como a célebre Festa dos Loucos, quando todas as convenções eram temporariamente suspensas. Nessas ocasiões, a ordem natural das coisas virava de cabeça para baixo. Os rituais mais sagrados eram parodiados de maneira obscena; metiam-se a ridículo dignitários da Igreja e do Estado, e permitia-se a todos os pobres-diabos oprimidos que dessem vazão ao que eles haviam reprimido durante o ano inteiro em matéria de hostilidade, lascívia e rebelião.

 

O nome Carnaval vem de “Carne Vale”, seu significado está ligado ao fato dessa festa pagã acontecer durante os três dias que antecedem a quaresma, um longo período de privação, portanto era como uma despedida dos pecados da carne. Esse nome surgiu depois que a celebração foi legalizada pela Igreja Católica para coibir o que a instituição classificava como celebração pecaminosa. Ou seja, a celebração tinha como objetivo principal extravasar e fazer tudo que durante a quaresma era proibido.

 

Hoje em dia, o espirito dessas saturnais sobrevive de forma aguada em carnavais, no Mardi Gras, no Fastnacht e, em menor extensão, em ocasiões como a Véspera do Dia de Todos os Santos, a Véspera do Ano-Novo, o Dia 1º de Abril, circos, paradas, rodeios, festivais de Rock e outros eventos em que prevalece o espirito dos dias feriados.

De modo geral, o Louco é um bom personagem para consultar todas as vezes que descobrimos que os nossos planos mais bem arquitetados foram por água a baixo, deixando-nos desesperadamente desorientados. Nessas ocasiões, se prestarmos atenção, ouvi-lo-emos dizer com um encolher de ombros: “Quem não tem meta fixa nunca perde o caminho”.

 

O arquétipo do Arcano Louco é muito presente também na cultura cigana, pelo costume de liberdade e de não ter um local fixo para moradia, estar sempre em movimento não estando preso a nenhuma nação:

Para saber mais sobre os ciganos, recomendo a leitura do texto “O Povo e a Cultura Cigana”

 

Presença desse arquétipo em Alice no Pais das Maravilhas

Aparentemente uma história para crianças, mas que na verdade, talvez seja a crítica mais severa a racionalidade que nós temos. O grande barato em Alice no Pais das Maravilhas é que tudo são regras: as regras da etiqueta, as regras da poesia, as regras do julgamento, as regras do palácio.

 

As regras olhadas internamente, o sistema faz sentido, mas essas regras na sua relação com mundo externo é uma loucura completa. Alice mora em “England”, quando ela vai para “Wonderland”, um outro mundo, ela acha que as regras de England ainda tem que valer em Wonderland. Ela acha que as regras que existem, as regras racionais são universais e se aplicam a qualquer lugar que exista sem nenhuma diferença.

Essa é a grande loucura do coração da modernidade: achar que existe uma noção de verdade que uma vez descoberta pode ser espalhada pelo mundo. O processo colonial da na África, na Ásia e a violência que o acompanhou em grande parte vem dessa premissa. É a loucura da gente achar que a razão é abstrata e universal e independe da condição histórica em que ela está.

Muito interessante é que no começo do livro, a irmã da Alice está lendo um livrinho que não tem diálogo nem figura. Para que serve um livro que não tem diálogo nem figura? Um livro desse é um livro de teoria e não um livro de romance, onde em um livro de romance a ideia é mimetizar a vida, e a Alice se interessa pela vida e não pela teoria.

Se Alice tivesse com o nariz enfiado no livro nunca teria visto o coelho branco passar. Se não tivesse tido a coragem de se jogar de cabeça em um lugar que ela não conhecia nunca teria vivido o que viveu.

No final da história quando os guardas vem prendê-la no julgamento ela fala: “vocês não passam de um bando de cartas” e ai ela acorda. Algo é muito importante aqui: qual é o valor da carta três em um baralho, é uma carta boa ou ruim de se tirar? Depende do jogo que você está jogando. Se eu estou jogando com você um jogo, eu sei as cartas que você tem, e quais cartas eu tenho e eu estabeleço as regras do jogo, adivinha quem vai ganhar?

Um livro do século XIX, aparentemente ingênuo, aparentemente inocente nos mostra o avesso de uma realidade que nos assombra.

 

Se desprender das regras, certezas e limites é parte comum arquétipo do Louco:

O homem precisa volta às suas origens, pessoais e raciais, e aprender de novo as verdades da imaginação. E nessa tarefa seus estranhos instrutores são a criança, que mal entrou no mundo racional do tempo e do espaço, e o louco, que apenas escapou dele. Pois somente esses dois então, até certo ponto, libertados da pressão desapiedada dos acontecimentos diários, o impacto incessante dos sentidos externos, que oprimem o resto da humanidade. Esse curioso par viaja ligeiro e empreende jornadas distantes e solitárias, às vezes trazendo, ao voltar, um ramo luzente da Floresta de Ouro pela qual vagueou.

 

O Arquétipo do Louco na psique moderna

Quando falamos sobre o Arquétipo de Louco, não estamos querendo dizer que é para as pessoas largarem tudo e andar pelas estradas como um andarilho. Os arquétipo são representações de posturas e consciências mentais, chaves que nos fazem entender nossa mente afim de lidar com conflitos ou inquietações em nossa mente. Um exemplo disso é a estória do Rei Pescador.

O Rei Pescador

Nossa história começa com o Castelo do Graal e seus terrível problemas, pois o Rei Pescador, monarca do castelo, foi ferido. Seus ferimentos são tão graves que o impedem de viver, mas, por outro lado, não o levam à morte. Ele geme, ele grita, ele padece o tempo todo. A propriedade é uma desolação só, pois as terras espelham as condições de seu rei, tanto na dimensão mitológica quanto na física. Assim, pois, o gado não mais se reproduz, as plantações não vingam, os cavaleiros são mortos, as crianças ficam na orfandade, as donzelas choram, há lamentos e gemidos por toda parte — tudo porque o Rei Pescador está ferido. A ideia de que o bem-estar de um reino depende da virilidade ou do poder de seu governante é bastante comum.

Assim, o Castelo do Graal está com sérios problemas porque o Rei Pescador está ferido. O mito nos conta que um belo dia, anos atrás, ainda durante a adolescência, ele estava percorrendo os bosques, praticando para ser um cavaleiro andante, quando deparou com um acampamento abandonado.

Curiosamente, porém, havia um salmão sendo assado num espeto. Faminto, serviu-se de um pedaço de peixe, sem perceber que estava muito quente. Seus dedos se queimaram de uma forma horrível. Deixou o peixe cair e levou os dedos à boca para aliviar a dor. Ao fazê-lo, pôde sentir um pouco do gosto do salmão, um gosto que jamais poderá esquecer. Essa é a ferida do Rei Pescador, assim chamado por ter sido ferido por um peixe, e que empresta seu nome ao que rege boa parte da psicologia moderna. O homem que sofre hoje, em nossos dias, é o herdeiro direto desse evento psicológico.

Outra versão da mesma história diz que o jovem Rei Pescador, subjugado pelo amor, saiu em busca de alguma experiência para satisfazer sua paixão. Outro cavaleiro, um pagão muçulmano, após haver tido uma visão da “Cruz Verdadeira”, saiu para encontrar uma manifestação de sua busca. Os dois se encontraram face a face e, como bons cavaleiros, baixaram o elmo e prepararam a lança para se baterem. O choque foi terrível, o cavaleiro pagão foi morte e o Rei Pescador foi ferido na coxa, o que arruinou seu reino por anos e anos. Que espetáculo! O cavaleiro que teve a visão e o cavaleiro da sensualidade batem-se num combate mortal. Instinto e natureza, de repente, sendo atingidos pela visão de uma “colisão” espiritual. Assim é o cadinho dentro do qual é forjado ou o mais alto nível de evolução ou um conflito fatal, capaz de promover a destruição psicológica.

Até tremo ao ver as implicações de tal embate, pois ele nos deixa o legado da morte de nossa natureza sensual e um ferimento “terrível em nossa visão cristã”. Dificilmente o homem de hoje se livre dessa colisão em algum momento de sua vida, o que poderá levá-lo a terminar nesse estado descrito em nossa história: sua paixão é morte e sua visão, muito ferida.

A história de São Jorge e o dragão, que foi adaptada de um mito persa do tempo das Cruzadas, diz mais ou menos a mesma coisa. Em sua luta contra o dragão, ele e seu cavalo são mortalmente feridos e teriam morrido não fosse a coincidência de um pássaro bicar uma laranja (ou uma lima) da árvore sob a qual jazia São Jorge, e uma gota do suco vital cair em sua boca. Levantou-se e, sem perca de tempo, espremeu um pouco do elixir da vida na boca de seu cavalo e o reviveu. Ninguém pensou em reviver o dragão.

Há muito o que aprender com o símbolo do Rei Pescador ferido. O salmão, ou mais genericamente o peixe, é um dos símbolos de Cristo. Como na história do Rei Pescador que descobre o salmão sendo assado, um garoto, nos primórdios de sua adolescência, toca algo da sua natureza crística, no seu íntimo — que é seu processo de individuação -; só que o faz prematuramente, sem nenhum preparo. Ao ser ferido por ele, deixa-o cair por estar quente demais. Mas, ao levar o dedo queimado à boca, prova seu sabor, e esse gosto jamais será esquecido. Seu primeiro contato com o que mais tarde virá a ser sua redenção, causa-lhe uma ferida. É o que o torna um Rei Pescador ferido. O primeiro lampejo de consciência no jovem aparece sob a forma de uma ferida ou um sofrimento.

Muitos homens ocidentais são Reis Pescadores, e todo garoto ingenuamente tropeça em algo que é muito grande para si.

 

O Louco nos ensina que a vida é simplesmente uma contínua dança de experiência. Mas a maioria de nós não consegue manter nem por breves períodos tal espontaneidade e liberdade. Devido aos medos, condicionamentos e simplesmente aos muitos problemas reais da vida diária, necessariamente permitimos aos nossos egos isolar-nos da experiência. No entanto, em nosso íntimo sentimos indistintamente a possibilidade de liberdade, e, portanto, invocamos este sentimento vago de perda, uma “queda” da inocência. Uma vez perdida esta inocência, no entanto, não podemos simplesmente ascender ao nível do Louco. Em vez disso, precisamos lutar e aprender, através da maturidade, da descoberta de nós mesmos a da consciência espiritual, até atingirmos a maior liberdade do Mundo.

O “peixe da sabedoria” — Salmon of Wisdom — da tradição céltica, que queima as mãos, mas que uma vez na boca confere sabedoria.

É doloroso ver um rapazinho dar-se conta de que o mundo não é feito só de alegria e felicidade, como pensava, e observar a desintegração de seu frescor infantil, de sua fé, de seu otimismo. Triste, porém necessário. Se não formos expulsos do Jardim do Éden não poderá haver a Jerusalém Celestial, e na liturgia católica do Sábado de Aleluia há uma bela passagem a esse respeito: “Oh! queda feliz, pois que deu a oportunidade para tão sublime redenção!”

 

Aquele que te faz rir, também pode chorar e se ver em desespero

Uma unanimidade entre conhecedores dos significados e símbolos dos arcanos do Tarô, é atribuir ao Arcano do Louco significados de alegria, diversão e até mesmo bagunça no sentido de traquinagem e euforia. Eu até concordo, mas temos que levar em conta, que parte da imagem do Louco que temos nessa carta, é construída sobre a imagem do bobo da corte medieval, e esse era apenas um cargo, um papel a ser cumprido! O que me faz imaginar que “fora do horário de trabalho”, esse bobo da corte era um homem comum com suas angústias e inquietações, e mesmo com as preocupações de homem comum tinha o dever de divertir a corte com seus truques e piadas.

Um ótimo exemplo disso é a peça de Rigolleto de Giuseppe Verdi, que na celebre encenação por Luciano Pavarotti, nos conta a história de um bobo da corte que durante uma festa onde ele diverte toda a realeza e nobres com atos pecaminosos, como gula, lascívia e o obscenidades, acaba não percebendo que a sua própria filha seria violentada pela “diversão” que ele mesmo incitou. A peça começa com o bobo da corte Rigolleto desamparado segurando o corpo da filha, então ele revê como tudo aquilo aconteceu (recomendo muito que vejam pelo menos os dez primeiro minutos do vídeo abaixo):

 

O Louco e a Música

De todos os arcanos do Tarô, eu vejo no Louco todos os artistas de circo, animadores ou músicos que transformam suas apresentações em momentos mágicos, principalmente por parecer que eles são de “outros tempos” ou simplesmente uma leveza ou ingenuidade quase infantil em seus espetáculos:

 
 

O Louco na Kabbalah

A Inteligência Cintilante

A energias dos arcanos na Kabbalah normalmente é relacionada a uma letra do hebraico. E a ideia do “arcano” ou Arquétipo é chamado de “caminho” dentro da árvore da vida, ou a “manifestação” de determinado caminho. Vale ressaltar também que no hebraico, uma letra pode ser interpretada como uma palavra completa, ou como uma letra isoladamente, o que da a cada uma das leituras interpretações diferentes:

Para o arcano do Louco é atribuído a letra-símbolo Aleph, letra da unidade absoluta. Na condição de palavra, Aleph significa boi, a interpretação disso é a atribuição do mais terreno dos animais, que significaria que o “objetivo do Espírito tem suas raízes na Terra”. O boi um símbolo da força motriz na agricultura, e equiparou agricultura a civilização, o boi como força vital, a energia criativa e “ação do poder em todas as formas de adaptação humana e modificação das condições naturais”, ou seja, não é uma representação do boi em si, mas sim, a forma como o homem emprega a força do boi para modificar a manipular a natureza para seus próprios propósitos.

Tomando Aleph como letra, é atribuído ao elemento Ar, nesse sentido significando Vida-Respiração. Embora a maioria das pessoas acredite que o Oriente dê maior importância à função da respiração do que o Ocidente, isso só acontece na religião exotérica. Nas técnicas esotéricas ocidentais, tal como no Oriente, a respiração é tudo, tanto na prática como filosoficamente.

 

A ideia de “inteligência cintilante” vem do conceito de dizer “que do nada surge o potencial para o pensamento”. O Louco é o potencial inicial desse pensamento que transcende a razão.

O Louco representa a verdadeira inocência, uma espécie de estado perfeito de alegria e liberdade […] “inocência” é uma palavra frequentemente mal entendida. Ela não significa “sem culpa” e sim uma liberdade e uma completa abertura para a vida, uma completa falta de medo que deriva de uma fé total na vida e em seu próprio eu instintivo. Inocência não significa “assexuado”, como certas pessoas pensam. É a sexualidade expressa sem medo, sem culpa, sem cumplicidade e desonestidade. O Louco traz o número 0 porque todas as coisas são possíveis para a pessoa que está sempre pronta a seguir em qualquer direção. A todo instante ele é um novo ponto de partida […]

 

O Arcano número Zero

O conceito de zero, desconhecido do mundo antigo, só apareceu na Europa a partir do século XII. O descobrimento desse “nada” ampliou de maneira importante a capacidade de pensar do homem. Praticamente, criou o sistema decimal e, filosoficamente, concretizou o assombroso paradoxo de que o “nada” é realmente alguma coisa, ocupa espaço e contém poder. A figura se apropria do que o zero tenha sido atribuído ao Louco: a magia do Louco pode transformar o “nada” em um milhão. O zero também é similarmente indestrutível, pois não pode ser modificado por adição, subtração, multiplicação ou divisão.

Na numeração arábica, o número 0 é representado na forma de um ovo, para indicar que todas as coisas se originam dele. Essa ideia do ovo é curiosa, principalmente se olharmos o símbolo que o Ovo tinha na alquimia, onde era um símbolo para total estabilidade de emoções ou sentimentos, mas ao mesmo tempo o caminho natural para a vida, mesmo “parado” um desenvolvimento está em curso.

Em Atalanta Evigiens — Emblemata Nova, temos a ilustração de um homem sendo convidado a imitar um ovo: “Pegue um ovo e imite-o”, o que para mim, teria a interpretação de que mesmo sem seu movimento “estático” o Ovo não transparece nenhuma emoção ou sentimento, e se ocupa apenas de seu progresso silencioso, que pode parecer “nada”, mas que dará origem a tudo.

 

Analisando as diferentes visões desse Arcano no Tarô

Esse é sem dúvida, o Louco mais famoso do Tarô, a versão de clássica de Rider Waite. Algumas pessoas o consideram o primeiro Arcano já que é o “número zero”, mas outros o consideram o último, principalmente por ele estar direcionado para a esquerda, como se estivesse voltando de algum lugar, ao invés de virado para a direita como se estivesse indo. Particularmente não acho que a direção dele (esquerda ou direita) represente a ordem, já que essa visão de o lado esquerdo ser a volta, e o direito o “para frente”, é muito ligado a nossa linguística, já que somos ensinamos a escrever da esquerda para direita (para frente). Mas se considerarmos a forma de escrita no oriente, várias línguas são escritas fora desse padrão, da direita para esquerda, ou até mesmo de cima para baixo, logo essa visão de ida e volta não faria sentido;

 

Os comentadores de Tarô que discutem se o Louco deveria ser colocado antes, depois, ou em algum lugar entre as outras cartas, parecem não entender o ponto principal. O Louco é movimento, mudança, o constante salto através da vida. Para o Louco não existe diferença entre possibilidade a realidade. Zero significa um vazio total de esperanças e medos, e o Louco nada espera, nada planeja. Ele reage instantaneamente à situação imediata.

 

Aqui e em outros baralhos de Tarô, nosso personagem é acompanhado por um cachorro que parece tentar chamar sua atenção, talvez para o precipício logo a frente ou qualquer outro perigo. Muitos consideram o cachorro como um símbolo do intelecto humano, o melhor amigo do homem, e outros consideram como o extinto, o subconsciente do homem que apesar de não conseguir falar em palavras, irá tentar chamar atenção do homem para avisá-lo de coisas que ele não perceba ou nem mesmo saiba. Nos filmes de Hollywood é comum em animações usarem esse símbolo do animal para representar uma parte do intelecto do personagem principal que nem ele próprio percebe, mas é um espelho de seu comportamento.

Vamos usar como exemplo o filme “Moana — Um Mar de Aventuras” (2016) dos estúdios Disney-Pixar: no filme a personagem principal está dividida se vale a pena deixar para trás o lar e a família, para partir em uma aventura para salvá-los, antes da partida ela se sente apreensiva se tal empreitada daria certo, e um animal de estimação que sempre a acompanha (um porco) parece que sempre a estimula a acreditar que a partida é a coisa certa a se fazer:

 

Porém, um tempo depois da jornada iniciada e as coisas não dão muito certo, nem a personagem sabe muito aonde ir e o que fazer, o animal que a acompanha dessa vez é um “galo” que tem um comportamento confuso e sem rumo, totalmente idêntico a postura atual da personagem:

 

Não só em Moana, mas em diversos outros filmes famosos, temos esse símbolo do animal de estimação que acompanha o personagem principal, e que são um espelho da personalidade do mesmo. Aladim e o seu companheiro “Abu”:

 

Tim Tim e seu companheiro Milu:

 

No baralho de Waite, essa ajuda de um animal é amigável, mas em outros baralhos como veremos a seguir, essa interação por mais que o ajude indiretamente, tem uma relação mais hostil, como onças e jacarés.

Sobre a flor branca que ele segura na mão, existem duas versões: a primeira sugere que seja uma Rosa branca, símbolo dos desejos mais básicos; a segunda sugere que seja um flor de Jasmim branco, símbolo das doces memórias do passado, algo que mesmo em uma lembrança antiga trás conforto, sorte e alegria, o que para uma jornada nova (como a que o Louco está iniciando) é um ponto de segurança ou incentivo. Novamente em Hollywood temos uma referência a isso: no filme Lara Croft: Tomb Raider (2001), no momento em que a personagem principal se dirige para um ponto crítico em sua aventura, ela encontra algumas flores de jasmim branco, um símbolo que a remete a boas lembranças do passado quando ela ainda era uma criança. Após um breve período de satisfação, ela acaba caindo em um buraco, onde será encaminhada para o verdadeiro desafio da jornada:

 

O símbolo da lembrança, também é retrato na trouxa que ele carrega nas costas, que é como se fosse as experiências que ele adquiriu no passado, que por mais que seja uma jornada de um “vazio”, ele ainda tem a sabedoria de momentos anteriores a partida (principalmente para as interpretações que consideram que o Louco é a última carta e não a primeira);

 

A carta acima é a versão do Louco no Tarô de Marselha, que depois da versão de Waite, é sem dúvida a segunda mais popular. Aqui a direção do personagem é da esquerda para a direita, e para o auxílio no caminho, usa um cajado indicando uma longa jornada, seja percorrida ou sendo iniciada. O cachorro que lhe ajuda, aqui tem uma ação um pouco mais ativa, não só latindo para chamar a atenção, mas rasgando um pedaço da roupa do personagem, o que parece que não o incomodar já que nem se quer olhar para o estrago ele olha, considero essa desatenção dele da seguinte forma:

  1. A roupa que ele veste não é relevante ou importante para a jornada, é como se a aparência externa não faça parte do objetivo, ou é pelo menos irrelevante, afirmando ainda mais a questão do desapego, liberdade tanto mental (interior), como exterior (roupas). Sempre que me tento imaginar andando por ai livremente como se eu fosse o Louco, acabo me pegando pensando em roupas, posturas, com a imagem que passarei para as pessoas. Essas coisas é claro, parecem serem o menos importante para o personagem retratado aqui;
  2. Uma segunda interpretação que podemos ter aqui, é que na verdade se o personagem percebesse o que aconteceu com suas roupas se preocuparia, mas por ser tão “distraído”, “engraçado”, ou “displicente” acabou nem percebendo que está andando todo “maltrapilho”. Essa ideia é referenciada pelo precipício em que se direciona o Louco do baralho do Waite, onde o personagem está tão distraído olhando para cima que não percebe o perigo a frente, e aqui, o personagem distraído, não percebe o que lhe ataca, ou então, está tão envolvido em uma realidade paralela que a percepção da realidade comum não lhe afeta.
 

O Louco do tarô Ancient Italian Tarot:

 

Na carta acima do baralho “Ancient Italian Tarot” vemos um louco ainda mais desapegado, além de ser incomodado por um cachorro que parece estar mais bravo do que os outros dois que vimos aqui até, suas roupas já estão rasgadas e está descalço de um dos pés, provavelmente de caminhos ainda mais difíceis que ele passou. Porém, ele está meio que olhando para nós, com uma feição que não é de tristeza ou amargura, passa até uma imagem de alegria como se fosse nos dizer algo ou fazer alguma travessura, ou no mínimo nos olha sugerindo como é “engraçada” a situação dele, quase ouço a voz dele me dizendo: “olha o que me aconteceu!! hahaha”.

 

A carta acima não é necessariamente um Tarô, mas sim uma carta de um oráculo chamado “Club Dumas”. Essa representação do Louco é uma das minhas preferidas: repare que ele está de frente a um labirinto, que pode levá-lo a muitos caminhos, tudo dependerá das escolhas dele, e que por sorte poderá ser um bom caminho, ou uma péssima escolha. A ideia da sorte é retratada pelos dados ao lado direito. E por falar em sorte, a porta de entrada do labirinto está fechada, mas a porta da saída está aberta, talvez seja uma mensagem de que sem sorte, nem o início do caminho será mostrada para ele, hora de rolar os dados mais uma vez?

O Louco em Alchical Tarot Deck:

 

A versão acima do Louco é do meu baralho de Tarô favorito, a versão do Tarô Alquímico do americano Robert Place, mostra um personagem os olhos vendados, e o animal aqui que o acompanha ou tenta chamar a atenção é um coelho branco. Uma ótima e curiosa coleção de símbolos temos aqui:

Na alquimia o “Louco” representa o alquimista iniciante, que começa a grande obra e vai persistir até o fim para obter a Pedra Filosofal. Começa na ignorância, como deve, mas, conforme persiste, sua tolice se tornará uma espécie de sabedoria. O alquimista na parte inferior da terceira página do Cabala, Spiegel der Kunst und Natur: in Alchymia, de Steffan Michelspacher, 1616 (figura abaixo) está num momento similar. Está vendado, um símbolo comum da Renascença para ignorância ou cegueira. A palavra Blind (cego) deriva do termo indo-europeu bhlendhow, que significa “confusão” e “não saber onde ir”. É correlata à palavra blunder que vem de blunda, da antiga língua nórdica, que é “fechar os olhos”. O Louco de Michelspacher não reconhece ainda a Matéria Prima, a primeira substância necessária para a grande obra. Sem saber como proceder, segue seu guia, a lebre, que o leva até a parte escura do interior da Terra. O Louco representa a mente natural. É um principiante e, como todos os novatos, precisa estar disposto a fazer papel de bobo se quiser aprender e amadurecer.

 

Usando a mesma ideia de “não saber aonde ir”, a carta abaixo do Tarô Pagão, mostra uma personagem andando “entre as estrelas”, e a posição de seus braços mostra que ela tenta apalpar algo para ver se consegue perceber alguma coisa, mostrando que mesmo estando com os olhos abertos ela não enxerga nada (pelo menos não com os olhos comuns). O animal que lhe ajuda aqui é um gato, símbolo da intuição, mostrando quais serão os “olhos” que vão guiá-la na jornada.

O Louco do Tarô Pagão:

 

No Tarô de Etteila, um dos mais antigos do mundo, vemos o nosso personagem também retratado com os olhos vendados, o que talvez tenha sido um dos primeiros Tarôs a usar essa ideia de “não saber aonde ir” nesse Arcano. Vale ressaltar que “não saber onde ir”, não significa estar perdido, e sim, não ter um destino ou meta definida, onde qualquer que seja o final do caminho, será de bom grado.

 

Aqui vemos o Louco do Tarô “of 78 doors”, vemos o Louco com uma chave na mão, porém não temos nenhuma porta retratada, talvez essa seja a procura do personagem, em qual porta essa chave serviria? Ou então, uma chave que abre qualquer porta.

 

O arquétipo do Louco não é presente apenas no Tarô, em qualquer baralho comum, é possível encontrar as cartas “coringas” que não pertencem a qualquer naipe ou sequência de números, mas podem ser encaixados em qualquer jogo como um trunfo. Geralmente é retratada como um brincalhão, ou com alguém que ilude e engana alguém, quase um “por essa você não esperava não é mesmo?”:

 

O Navio dos Tolos

navio dos tolos é uma alegoria , proveniente Livro VI de Platão, República , sobre um navio com uma tripulação disfuncional, repleta de “bobos da corte” ou “Loucos”:

 

A ideia da jornada era que o navio teria como destino o “Paraíso dos Loucos”, e a cada parada em portos e cidades, os marinheiros desse navio acabavam se envolvendo nas mais variadas situações complicadas, seja por desastre, displicência ou vícios. Essa retratação era usada para criticar lideranças de religiões que se diziam pregar um caminho para a salvação, mas a vida que levavam era de total caos:

 

É preciso que, dez vez em quando, descansemos de nós próprios, olhando-nos de cima e de longe e, com longínquo da arte, rir ou chorar de nós e por nós mesmos: é preciso descobrirmos o herói e também o louco que se dissimulam na nossa paixão do conhecimento; sejamos felizes, de vez em quando, com a nossa estupidez, para que possamos continuar felizes com a nossa sabedoria! E é precisamente porque, no fundo, somos pesados e sérios, e antes pesos do que homens, que nada nos faz melhor do que o chapéu de bobos: temos necessidade dele perante nós próprios, precisamos de toda a arte exuberante, flutuante, dançante, trocista, infantil e virtuosa, para não perder essa liberdade que nos coloca acima das coisas e que o nosso ideal exige de nós.

Gostou do texto? Gostaria muito de saber sua opinião ou feedback.

Se você tiver qualquer dúvida pode me enviar um e-mail para diogenesjunior.ti@gmail.com.

 

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Fontes e Referências

Alquimia e Tarô — Robert M Place;

78 Graus de Sabedoria — Rachel Pollack;

O Tarô Cabalístico — Robert Wang;

Jung e o Tarô — Sallie Nichols;

Alice no Pais das Maravilhas — Lewis Carroll;

5 clássicos para entender o mundo atual: Alice no País das Maravilhas | José Garcez Ghirardi — https://www.youtube.com/watch?v=tZ6sMdkSJJQ;

A história do Carnaval — http://historia-do-carnaval.info/;

The Themes Of Shakespeare — King Lear — BBC https://www.youtube.com/watch?v=clyX26QMw1g;

He — Robert A. Johnson;

Emblemata Nova — Atalanta Evgiens;

Alquimia — Marie Louise Von Franz;

The Ship of Fools — https://en.wikipedia.org/wiki/Ship_of_fools;

A Gaia Ciência — Friedrich Nietzsche;

 

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